2005/01/31

Os custos com pessoal...

... ou: por que é que fazemos mal as contas

Quando se recebe uma proposta de fornecimento de serviços é habitual fazer uma comparação entre o valor proposto e um hipotético salário de trabalho dependente que corresponderia ao mesmo tempo de serviço. Essa comparação é legítima e eu, pessoalmente, baseio-me nela para determinar os valores que eu próprio proponho.

Contudo, ao fazer esta comparação é necessário ter em conta um conjunto de factores que frequentemente são esquecidos mas que quem presta o serviço tem infelizmente que prever. Daí a diferença apenas aparentemente grande entre os valores do trabalho dependente e os da prestação de serviços.

Aqui ficam abaixo alguns exemplos de custos "escondidos" para entidades empregadoras e que têm o seu equivalente também nos fornecedores de serviços. Tendo estes aspectos em conta, é também possível chegar a conclusões sobre o que seria um valor "normal" para prestação de serviços.
  • Um trabalhador dependente tem 14 meses de salário por ano, o prestador de serviços cobra apenas 11 ou 12.

  • A entidade empregadora desconta 23,75% do salário para a segurança social, o que não acontece quando adquire serviços, pois esse desconto é suportado pelo fornecedor.

  • Um entidade empregadora deve obrigatoriamente ter um seguro de acidentes de trabalho para os seus trabalhadores. Os trabalhadores independentes têm também que o possuir e suportar portanto o respectivo custo. Em muitos casos é também necessário um seguro adicional de responsabilidade civil.

  • Os custos de formação profissional (incluindo o tempo de "não-trabalho") podem ser significativos para uma entidade empregadora e também existem para profissionais liberais.

  • A existência do posto de trabalho e das ferramentas a ele associadas pode atingir valores muito elevados para a entidade empregadora e também para trabalhadores independentes:
    - amortização ou arrendamento das instalações e mobiliário
    - computadores e licenças de software
    - telefone, fax, electricidade, acesso à Internet, consumíveis...
    - documentação técnica
    - em alguns casos, viatura e telemóvel.
Além destes factores, alguns pontos adicionais.
  • O tempo de "conquista" do cliente não conta como "horas de trabalho a cobrar" pelo fornecedor de serviços mas é efectivamente gasto e portanto reflecte-se indirectamente.

  • Há uma característica subjacente à actividade de prestação de serviços, que é o de nem sempre conseguir "vender" 100% do tempo disponível. Ao contrário, o funcionário de uma organização tem o seu salário garantido bem como hipóteses de progressão na carreira.

  • Um trabalhador independente não tem uma "máquina administrativa" à qual pode recorrer tal como existe normalmente numa organização e que para ela é um custo de funcionamento: secretariado, contabilidade, apoio jurídico, etc.

  • O risco acrescido de uma actividade independente só faz sentido se proporcionar receitas mais elevadas do que o trabalho por conta de outrem.
Conclusão: só aparentemente é que os serviços de consultoria são bem pagos em Portugal...
Como por parte do cliente típico não há a percepção de todos estes factores, os valores que está disposto a pagar pelo serviço são em geral muito inferiores aos que seriam justos e que são correntes noutros países mais desenvolvidos (mesmo descontando as diferenças do custo de vida).

2005/01/29

Santana vs Sócrates

Pelo andar da campanha, pelas propostas que (não) são apresentadas, pelas pessoas que se apresentam para um eventual Governo caso vençam as eleições, parece-me que se aplica aquilo que aqui escrevi relativamente a Bush vs Kerry.

Ou seja, talvez seja preferível Santana a Sócrates. O primeiro já pode corrigir os seus erros, o segundo ainda teria que os cometer. Nenhum deles me convenceu mas, mal por mal, antes Santana Lopes. Há a alternativa do voto em branco, que era o que mereciam. Mas infelizmente isso não resolve o problema do país e significa deixar para outros a decisão de quem nos vai governar. Os partidos valem muito mais do que aquilo que os seus líderes actuais representam.

2005/01/17

A Política "Open Source"

Defendo que se deve fomentar um estilo de Política de alguma forma análogo ao software “Open Source”. Da mesma forma que nesse software o código é tornado público para poder ser analisado, comentado, corrigido e melhorado, também na gestão dos dinheiros públicos se deveriam como regra geral seguir princípios equivalentes:
  • dar a conhecer os objectivos
  • tornar públicos os estudos
  • recolher sugestões e comentários sobre os projectos
  • avaliar e divulgar os resultados.
Não se trata necessariamente de procurar consensos muito alargados, mas sim de ouvir um leque abrangente de opiniões para depois decidir mesmo que não se siga a moda. Mas deve existir sempre esse “controlo de qualidade” através da participação voluntária da sociedade civil. Mais que isso: entendo que esta “open source” na Política é um direito dos cidadãos.

2005/01/04

Vida em sociedade

Ontem apareceu um texto no Causa Nossa sobre uma inacreditável limitação que um condomínio americano pretende impor: não poderão lá habitar crianças menores de 16 anos! Mais tarde defendeu-se no Blasfémias que essa pretensão é legítima... Tive que responder. Recolho aqui de forma mais organizada aquilo que escrevi no debate que houve nos comentários do Blasfémias.

Tomemos um exemplo didáctico igualmente caricatural:
"Não se aceitam pretos neste condomínio. Quem não gostar ou for preto pode ir morar para outro lado."

Find: "preto"
Replace with: "criança"
Qual é a diferença?

Find: "preto"
Replace with: "idoso"
Qual é a diferença?

Find: "preto"
Replace with: "muçulmano"
Qual é a diferença?

Find: "preto"
Replace with: "mulher"
Qual é a diferença?

Find: "preto"
Replace with: "deficiente"
Qual é a diferença?

Cada um pode fazer o que quiser NO SEU espaço privado pessoal, mas não pode ORGANIZAR-SE com outras pessoas para fazer distinções destas num conjunto de propriedades privadas para exclusão de uma classe particular de cidadãos na base da raça, credo, idade, etc. É uma limitação que qualquer sociedade minimamente civilizada deve impor aos cidadãos. Quem quer viver num espaço "limpo de indesejáveis" compra a sua própria moradia. Se estiver num condomínio, sujeita-se às regras gerais da vida em sociedade. Se não tem dinheiro para uma moradia autónoma, isolada, paciência. Não se pode ter tudo na vida. Lá vai ter que conviver com crianças, brancos, pretos, doentes, etc.

A diferença é entre "vida estritamente privada, individual" e "vida em sociedade". "Condomínio" é claramente "vida em sociedade".

Posto noutros termos: situações como esta aqui relatada, em caso de divergência insanável, legitimariam o uso da força bruta por parte de quem se sentir prejudicado, contra o Estado que sustentasse essas leis e contra esses privados.

Esta é uma questão de fundo que só se aprende e aceita ao longo da vida e do nosso aperfeiçoamento pessoal. São valores absolutos, se calhar até axiomáticos. Não compreender este problema da exclusão mesmo no domínio privado é não perceber os fundamentos de uma sociedade civilizada, da democracia. Com humildade e honestidade intelectual, mais tarde ou mais cedo isto percebe-se.

Há uma característica que as pessoas normalmente vão ganhando com a idade. É a capacidade de criar "alertas" eficazes que actuam quando inconscientemente o raciocínio nos leva a exageros insustentáveis, ou quando as acções divergem dos fins a que se destinavam. É isso que nos obriga a pensar de novo (muitas vezes recorrendo a cenários por redução ao absurdo), ou a comparar aquilo que fazemos com o "estado da arte" a que outros já chegaram. É este esforço de humildade e ponderação que posteriormente sustenta o nosso progresso. Chama-se a essa característica "maturidade".

PS: Ler também Vital Moreira.

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