2008/09/24

O sistema financeiro

Warren Buffett, em 2003, (e antes dele também outros) não se limitou a falar em “time bombs” e em “financial weapons of mass destruction”, explicou também tudo muito bem explicadinho, com exemplos. A carta aos accionistas da Berkshire Hathaway teve grande divulgação na altura. Como foi possível que os especialistas tivessem deixado a situação chegar a este ponto? Onde estavam as autoridades e os reguladores? Há inúmeras maneiras de ver que algo de muito grave iria acontecer. Se olhando por exemplo para a emissão pirata de moeda (um dos vários pontos de vista complementares que existem) até eu, que não sou da área, consigo entender o buraco em que o sistema se meteu, o que se passou com quem é profissional do ramo? Deixou andar? Ou pura e simplesmente não percebeu a realidade onde estava inserido?

Há uma medida simples que evitaria muitos problemas: impor critérios contabilísticos mais conservadores, prudentes, que não aceitem que se registem como mais-valias todas as ficções que agora são permitidas. Aliás, a raiz do problema está mesmo aí: contabilidade permissiva e irracional, além de pouco auditada na prática porque com a "sofisticação" actual se tornou impossível seguir o rasto ao dinheiro e aos riscos.

2008/09/21

A emissão pirata de moeda

Este caso do estudo das cheias relatado aqui pelo Alexandre Burmester convenceu-me a escrever este texto, que comporta algum risco porque vou tratar de assuntos nos quais não sou especializado. Trata-se desta enorme confusão que vai nos mercados financeiros, e que provou que afinal a esmagadora maioria dos especialistas não percebeu nada do que se estava a passar. Pior que isso, essa gente não se inibe de continuar a opinar como se não lhe tivessem passado ao lado enormes fragilidades e irracionalidades no sistema financeiro, com as quais supostamente contactariam todos os dias! Tal como nas cheias, também no sistema financeiro não podemos confiar nos especialistas.

Tirando algumas figuras que merecem respeito porque há muito avisaram quanto ao que aí vinha, como Warren Buffett ou George Soros, quase todos os outros se limitam a citar autores famosos e a mostrar grande erudição (certamente muito maior que a minha, pelo menos neste campo), mas sem que isso lhes tenha trazido grandes resultados. Por isso vou tentar eu explicar à minha maneira, partindo daquilo que observo e sobre o qual reflicto, alguns aspectos que me parecem relevantes. No que escrevo a seguir vou fazer algumas simplificações, ignorando fenómenos de segunda ordem, para que a exposição se torne mais compreensível. Perdoar-me-ão também se não utilizar a terminologia técnica mais adequada, pois não sou um virtuoso em macroeconomia e finanças, mas espero que se compreendam quais os conceitos aos quais faço referência. Peço a quem considerar errada a minha opinião (que já comecei a tentar explicar nos comentários a posts no Insurgente e também um pouco no Norteamos) que tenha a caridade de me explicar claramente, e concretamente, em quê e porquê, sem se refugiar em referências ou conceitos exóticos. Eu só percebo coisas simples. (Ao que se vê, os especialistas parece que nem isso...)

O dinheiro, como se sabe, é uma convenção. Baseia-se na confiança da sociedade, como um todo, no "sistema". O dinheiro hoje em dia já não é sequer uma representação de uma reserva de ouro que existe algures num cofre-forte. Por isso os bancos centrais podem imprimir notas, criando efectivamente moeda a partir do zero. Apesar de à primeira vista esta "magia" parecer muito estranha, compreende-se por que razão ela funciona e quais as consequências do seu mau uso. Sem grande tempo para procurar referências, encontrei contudo dois pequenos textos que se referem a isto e que podem ajudar quem nunca tinha pensado no tema.

O conceito de "dinheiro" que me interessa agora é bastante lato, juntando aquele que aqui cabe na classe "M3" com acções cotadas em bolsa e similares (explico porquê abaixo). Acontece que, ao contrário do que pensa a maioria das pessoas (e possivelmente os tais especialistas), não são apenas os bancos centrais que "emitem moeda". Na economia há outros* mecanismos que são exactamente equivalentes à emissão de moeda e também à sua retirada do sistema. Dividi-los-ia em dois tipos: o "Bom" e o "Mau".

O "Bom" é aquele correspondente à criação real de riqueza e explica-se bem com um exemplo simplificado. Vamos imaginar que a Ana cria uma empresa que é cotada em bolsa. O património dessa empresa é constituído pelas esculturas dela, e cada acção começa por valer 1 euro, havendo 1000 acções no total. Se a Ana, trabalhando na empresa sem contrapartida financeira nenhuma, for criando mais esculturas, o património da empresa vai aumentando e portanto o valor de cada acção vai também subindo. Ao fim de algum tempo supostamente valeria 10 euros (no sentido de que só seria vendida por esse preço). Como não houve nenhuma entrada de dinheiro, por causa disto de facto o mundo ficou mais rico 9 euros por acção da empresa da Ana. Ou seja, há mais 9000 euros na massa monetária total, correspondentes a algo real que foi "criado do nada". Essa riqueza ficou na posse dos detentores das acções, e tudo o resto no mundo se manteve inalterado. Moral da história: a Ana efectivamente "emitiu moeda" no montante de 9000 euros. (O caso oposto, de retirada de circulação de moeda, seria destruir-se uma escultura, por exemplo, diminuindo o valor das acções.)

O "Mau" também se apresenta com outro exemplo simplista. Eu compro em bolsa uma acção X (de uma empresa qualquer) a 1 euro. Pago em dinheiro vivo, mesmo. Um amigo meu, combinado comigo, faz semelhante: compra uma acção Y a 1 euro, também paga cash. Imaginemos depois que durante um período não há mais transacções destas acções em bolsa a não ser as que eu e o meu amigo realizamos. Eu vendo-lhe a minha X por 2 euros e ele paga-me com a dele Y que diz valer também 2 euros (e eu acredito). Eu fiquei portanto com uma Y “a valer 2″ e ele com uma X “a valer 2″. Mais tarde vendo-lhe de volta a Y, mas por 4 euros. E ele paga-me com a X que supostamente já vale também 4. Quer eu quer ele quadruplicamos o nosso investimento inicial: eu tenho uma X que supostamente vale 4 euros, e ele uma Y que supostamente vale 4 euros. Sem qualquer contrapartida financeira nem geração de "riqueza real" (ao contrário do caso da Ana), também aqui "emitimos moeda" e ficámos com ela para nós. (No mundo real isto não se passa apenas com duas pessoas, o que acontece é que há negócios "em circuito fechado" entre muitas.)

Repare-se que até se pode transformar esse valor das acções em cash: eu posso ir ao banco pedir um empréstimo** de 4 euros, dando como garantia a minha acção. O banco, todo contente, passa-me o dinheiro para a conta à ordem com base na cotação actual. O Pedro Menezes Simões explica aqui (comentário 10) que "os bancos podem utilizar acções, de forma parcial, como componente dos rácios de capital que têm que manter (e que são uma componente relevante na capacidade multiplicadora de dinheiro dos bancos). Pelo que, se as acções sobem, os bancos conseguem multiplicar mais o dinheiro. E quando descem reduz-se a sua capacidade de multiplicação do dinheiro (ups, é preciso fazer aumentos de capital, i.e., ir buscar dinheiro "vivo")".

Esta capacidade multiplicadora dos bancos é criação de moeda aceite pelas autoridades monetárias. Como o valor das acções pode ser facilmente convertido em cash através de empréstimos bancários garantidos por essas mesmas acções (mesmo que não a 100%), é como se a moeda “virtualmente” já existisse. (Neste caso não é importante determinar com exactidão a quantidade de moeda, mas apenas se há ou não criação, e ter uma ideia rude de quanto é.)

Por que é que o "dinheiro mau" é mau? O caso é igual à emissão de moeda por um banco central. Quando há mais dinheiro a circular mas não se gerou "riqueza real", há inflação. Por outras palavras, o que existe disponível para ser comprado é o mesmo, só que há mais dinheiro: logo, os preços aumentam. Contudo, ao contrário do que se passa quando é o banco central a emitir, neste caso há efectivamente uma apropriação de riqueza por parte destes "emissores privados de moeda". É "enriquecimento sem causa", é um roubo puro e simples ao resto da sociedade. Já o caso da Ana era saudável: ela emitiu moeda mas não provocou inflação porque, além da moeda, introduziu no sistema o valor correspondente: as suas obras de escultura.

O que se estava a passar no sistema financeiro, em larguíssima escala, era entre outras coisas também isto: emissão privada de moeda em operações financeiras sofisticadas (sem introdução de dinheiro fresco no sistema nem criação de riqueza, portanto). Estava uma minoria a roubar uma vasta maioria. Tinha de acabar mal.

A ver pela reacção completamente irresponsável das bolsas na Sexta-feira passada, com uma subida louca e insustentável, o mercado não terá percebido isto. Da maneira que as coisas estão no Porto e no Norte, se os impactos são graves em regiões comparativamente ricas, vai ser muito pior aqui. Preparemo-nos.

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* Um outro exemplo de "emissão de moeda" é a atribuição de capacidade construtiva a terrenos, conforme explica por exemplo Sidónio Pardal.

** Note-se que, ao contrário do que se escreve aqui, na prática a emissão de moeda não se dá apenas no momento da concessão de crédito bancário. O simples facto de o mercado reconhecer um valor acrescido "surgido do nada" já consuma a "emissão de moeda", pois esse património é desde logo negociável.

Apontadores interessantes:
- Buffett warns on investment 'time bomb' em 2003!
- To the Shareholders of Berkshire Hathaway Inc. (a carta de 2003, ler a partir da página 13)

(Publicado originalmente n'A Baixa do Porto.)

2008/09/05

Os "grandes" arquitectos

O problema de alguns famosos arquitectos, como Siza Vieira, Souto Moura, e outros (já sem falar em grandes estrelas estrangeiras) é que vivem num mundo ideal que não existe! E pensam as suas obras para esse mundo, esquecendo que depois, na realidade, o uso que as pessoas dão ao espaço não é compatível com os “princípios de pureza” que eles gostariam de ver respeitados. E as coisas correm mal…

Um bom arquitecto tem de projectar os espaços para que as pessoas se sintam bem neles (mesmo que precisem de algum tempo de habituação). Não é o caso da generalidade dos trabalhos, por exemplo, de Siza Vieira. Ele quer impor a sua obra mesmo que tenha de ser contra a vontade dos utilizadores. No caso concreto da Avenida dos Aliados no Porto, que poderia ser extrapolado para outros, verifica-se que o resultado final real, com o uso que acaba por ter (barraquinhas, etc.) é mau. Significa isto que o conjunto arquitecto + Câmara + povo não foi capaz de se entender. E, do ponto de vista do arquitecto, significa consequentemente que ele, sabendo a autarquia e o povo que tem, não conseguiu obter uma solução que funcionasse bem. Falhou a sua tarefa de arquitecto.

2008/06/08

O Tratado de Lisboa

Espero que os irlandeses votem NÃO. Independentemente de as alterações trazidas pelo Tratado serem positivas ou negativas, há dois motivos suficientemente fortes para o recusar sem olhar para mais nada:
  1. terem-nos negado a possibilidade de o votar, sob vários pretextos;
  2. a extensão e enorme confusão do texto, um amontoado de artigos sem qualquer preocupação de se tornar legível.

2008/06/06

De novo as touradas

Não terá certamente contestação a afirmação de que, numa tourada, o touro está a ser maltratado, colocado em sofrimento. Perante isto, há duas posições:
  1. esses maus-tratos justificam-se atendendo à "tradição", à "cultura", à "arte";
  2. esses maus-tratos não se justificam.
Tão simples quanto isto. Já aqui, em 2004, publiquei a minha opinião. Há quem diga que os animais existem para nos servir, e que portanto não seria abusivo usá-los para fins como este. Em minha opinião nada legitima essa nossa "apropriação" da Natureza. Somos (humanos) apenas muito mais inteligentes, muito mais poderosos, e por isso responsáveis pelo uso que fazemos da Terra. Não somos "equivalentes a Deus".

Os defensores da tourada (que admito sejam bem intencionados, não é essa a questão), atribuem ao touro sentimentos humanos, projectam no touro aquilo que imaginam uma pessoa sentiria se estivesse no lugar dele. O problema é que o touro não é uma pessoa!

O touro não tem interesse na luta com o homem. O touro foi apenas levado para a arena e tenta defender-se num ambiente hostil. O touro não se sente honrado por lá estar, não tem orgulho no combate, não pensa como um humano. O touro é um mamífero com alguma inteligência, tal como um cão ou um gato. E, como qualquer mamífero, sofre com medo, com stress, e quando lhe espetam ferros na carne. O resto, o "prazer psicológico" do combate, não existe a não ser na imaginação do toureiro e dos espectadores.

2008/01/10

O Tratado de Lisboa: Democracia podre

A questão do referendo ao Tratado de Lisboa é mesmo muito séria, porque abala as bases da Democracia. O Governo, o Presidente da República e a Assembleia da República, todos eles, violaram gravemente os seus deveres constitucionalmente estabelecidos. Explico porquê.

Quando um Governo nasce do resultado de um acto eleitoral, e na sequência da apresentação do seu programa que foi validado pelos eleitores, é seu dever aplicá-lo. Atendendo a que o mundo está em permanente mudança e que ninguém tem a capacidade de prever o futuro com rigor absoluto, aceita-se que a prática seja diferente do previsto no programa, precisamente para a ajustar às novas situações. Mas é preciso que as situações sejam de facto novas, e que as alterações ao programa sejam as mínimas indispensáveis.

Um exemplo caricatural: imaginemos que um partido ganhava com maioria absoluta depois de ter prometido baixar os impostos para metade e subir as pensões de reforma para o dobro. No primeiro dia de Governo, contudo, fazia exactamente o contrário: os impostos subiam para o dobro e as pensões desciam para metade. Qual era o dever do Presidente da República? Demitir imediatamente o Governo, dissolver a AR e convocar novas eleições.

Os eleitos têm de perceber que são representantes do povo, não são "encarregados de educação" do povo. Se se apresentam com um conjunto de ideias que é sufragado pela população, é isso que devem concretizar. Não têm mandato para tomar decisões estruturais que nunca foram propostas nem votadas, a menos que as circunstâncias fossem completamente novas e a urgência impeditiva de uma consulta popular. No caso deste referendo, nem uma coisa nem outra.

Sublinho que o que aqui está em causa não é saber se o Tratado de Lisboa é bom ou é mau, mas sim se é legítimo (invocando o interesse nacional, ou o interesse europeu, ou a ignorância da população, ou a complexidade do tratado, ou seja lá o que for...) evitar um referendo porque se receia que o respectivo resultado seja negativo! É a subversão total da Democracia!

É evidente que em Democracia os resultados do voto popular nem sempre são aquilo que cada um de nós, individualmente, consideraria o mais sensato. Mas essa é a essência da Democracia! Ninguém tem o direito de aproveitar o facto de ter sido eleito para, depois disso, fazer tudo o que lhe apetece. É esse, aliás, o mal também de Rui Rio no Porto (em alguns aspectos tristemente parecido com Sócrates).

Se o referendo a um "Tratado Constitucional" foi prometido antes das eleições, não há razão válida para suprimi-lo no caso deste "Tratado de Lisboa". Ponto final.

O que agora me parece indispensável, à luz destes princípios, é invocar a inconstitucionalidade da decisão de ratificar o tratado no Parlamento, e levar o caso ao Tribunal Constitucional. E também convém não nos esquecermos de quem são os responsáveis por este abuso do sistema, quando formos votar da próxima vez.