2009/12/31

O quarto individual

Na maior parte dos casos o quarto individual vai adicionar à doença a solidão e uma assistência menos eficaz

Li na passada Terça-feira, aqui no JN, que no projectado Centro Hospitalar de Gaia/Espinho “predominará o quarto individual”. Para alguns doentes isso será preferível, especialmente se tiverem a sorte de possuir familiares com disponibilidade para proporcionar companhia pemanente. Mas na maior parte dos casos o quarto individual vai adicionar à doença a solidão e uma assistência menos eficaz.

Escrevo com algum conhecimento de causa: já estive hospitalizado por alguns dias várias vezes (felizmente nenhuma delas por razões graves) em hospitais públicos e privados; trabalhei durante ano e meio no Hospital de Gaia. Façam-se algumas contas. Que percentagem dos doentes terá, na prática, visitas ou companhia? Que porção do tempo estarão sozinhos no seu quarto privativo? Antevejo o anúncio governamental: “inovação e progresso - cada doente com a sua própria televisão”! Não me atrevo a imaginar quantos minutos estará um profissional de saúde no quarto, nem as conversas que o internado terá com as paredes, mas adivinho os impropérios na cabeça de cada pessoa arrumada num cubículo do moderno complexo hospitalar quando receber de mãos diligentes um fantástico Magalhães com ligação de banda larga para actualizar a sua página do Facebook.

Quem é que projecta estes espaços e toma estas decisões? Não lhes exigem que vivam num hospital antes de desenhar um novo? O Estado vai mais uma vez atirar com dinheiro para cima dos problemas, neste caso possivelmente cheio de boas intenções que não escondem a habitual incompetência. Não se despreze o conhecimento humano acumulado: o “hospital ideal” nunca foi o “hospital do quarto individual”. As enfermarias, quando bem organizadas e de dimensão adequada, são os ambientes que mais favorecem a recuperação. O sofrimento ultrapassa-se melhor quando se aprende a partilhá-lo e a confortar quem está pior do que nós, quando se aceita que ele é inevitável. Faço votos para que em 2010 se compreenda que, também na doença, estamos melhor juntos do que cada um no seu canto.

(publicado no JN de 2009/12/31)

2009/12/18

Empresários de aviário

A reabilitação urbana é para quem está disposto a apostar o seu dinheiro antes dos outros - não por altruísmo, mas por apurado sentido de negócio

A reabilitação urbana é uma das áreas onde mais se evidencia o divórcio entre os investidores e o mundo real em que é suposto actuarem. Constroem um modelo teórico e tentam que a realidade a ele se adapte.

Um dos mitos é: “um bom negócio encontra sempre investidores”. Se assim fosse o centro das cidades tinha hoje outra vida! Em grande parte das situações é impossível provar que determinada oportunidade é um bom negócio, pois ele é criado à medida que vai sendo implantado. Faz sentido, por exemplo, preparar um projecto de arquitectura e obter o respectivo licenciamento antes de adquirido o imóvel ao qual se destina? Quem está disposto a arriscar esperar vários meses pela conclusão do processo sem ter assegurada a compra, podendo entretanto ver a oportunidade fugir? E, sem um projecto garantido, com que base se faz um plano de negócios convencional? Pior: se ainda não há propriamente um mercado a funcionar, que confiança atribuir a esse plano?

Os negócios têm muito de conhecimento não quantificável mas válido. Quando se verifica ser possível fazer contas detalhadas, é viável o recurso a crédito bancário ou a parcerias numa perspectiva eminentemente financeira. Mas e os outros casos? O “investidor” português típico é apenas gestor de património alheio: funcionário que tem de prestar contas aos accionistas da empresa que o contrata. Não pode justificar-se com um "investi aqui o vosso dinheiro porque me cheirou a bom negócio" e por isso defende-se exigindo estudos ou pareceres completamente irrealistas. Acaba por não aplicar o capital na reabilitação urbana nem nunca encontrar "bons projectos".

Falta aparecerem os verdadeiros empresários. A reabilitação urbana é para quem conhece o meio, para quem consegue preparar uma oferta adequada à procura que sabe existir, para quem antevê o futuro de cada cidade e sabe contribuir para o concretizar, para quem gosta dela e está disposto a apostar o seu tempo e o seu dinheiro antes dos outros - não por altruísmo, mas por apurado sentido de negócio.

(publicado no JN de 2009/12/17)

2009/12/04

O Tratado de Lisboa, agora em filme

Ver Cinema é também falar sobre ele, ou usá-lo como pretexto para conversar sobre outros assuntos

O Porto tem uma riqueza ímpar a nível de Cinema, que desperdiça de modo escandaloso. A Casa das Artes há anos sem projecções, o Cineclube do Porto moribundo apesar do património com grande relevância histórica e cultural, o fantasma da Casa do Cinema que a autarquia quis à força oferecer a Manoel de Oliveira. Isto apesar do sucesso do Fantasporto, da vigorosa actividade a nível das universidades e dos clubes informais, de Serralves, da Casa da Animação, da RTP no Monte da Virgem, ...

A nova Ministra da Cultura divulgou há dias a intenção de reactivar a Casa das Artes, realizando as obras necessárias. Há em simultâneo alguma agitação em volta do Cineclube do Porto, estudando-se potenciais sinergias. Grande parte das dificuldades provém apenas de mal-entendidos, desconfianças e muita inércia. Que não se ruminem os momentos infelizes do passado mais recente, mas que se divulguem desde já ideias neste campo como contributo para tornar a cidade mais atractiva.

Só passar filmes não basta – para isso temos DVD e os LCD em casa, com ou sem pipocas. Ver Cinema é também falar sobre ele, ou usá-lo como pretexto para conversar sobre outros assuntos – na velha tradição das tertúlias adaptadas aos dias de hoje. Os exemplos que funcionam bem noutros locais merecem ser copiados. Um cineclube com futuro tem de viver no âmbito de parcerias que complementem a sua oferta. Sejam escolas, bares, galerias de arte, partidos políticos, autarquias, outros cineclubes, salas de cinema comercial. Há mercado ligando documentário e jornalismo, ou arquitectura e filmes sobre cidades, ou política e a vida na Europa transposta para o ecrã.

A propósito, aqui vai já uma sugestão para o tema de um ciclo: o Tratado de Lisboa. É que não faltam sequer argumentistas locais para novas produções: aproveite-se a comédia proposta há dias por Paulo Rangel, defendendo como positivas as “dificuldades de interpretação” do tratado pois assim supostamente cria-se “um espaço de criatividade” que “dá o palco à política”. Bom filme!

(publicado no JN de 2009/12/03)