2010/07/30

Donos do alheio

Preocupação social sensata não é limitar o máximo que alguém pode ganhar, mas sim maximizar o que recebe o mais desfavorecido

Multiplicam-se as movimentações para conquistar o direito de gerir património alheio. A vários anos de distância, sugerem-se nomes para a presidência da Câmara do Porto, transformada em assunto nacional por causa da corrida perdida da Red Bull; os meios regionalistas nortenhos animam-se com a esperança de que um novo partido, ele sim diferente dos outros, conquiste um nível de governo local; até um respeitado bispo, num entusiasmo reivindicativo, reclama 20% do salário de uma classe profissional muito desacreditada.

Comum a tudo isto é o esquecimento da acção individual a nível privado, empurrando os problemas para os recursos do Estado ou de outrem. Custa-me debater candidaturas a funções públicas sem pensar no projecto em que aí se deverá trabalhar. Custa-me ver um potencial partido esgotar a sua missão na exigência de uma reorganização territorial, quando esse objectivo poderia ser defendido transversalmente dentro das várias forças políticas já existentes. Custa-me “confiscar” 20% seja lá do que for aos políticos, e não também aos engenheiros, aos advogados, aos pescadores, aos membros do clero, ou até aos falsos recibos verdes que Serralves agora acabou por reconhecer. Preocupação social sensata não é limitar o máximo que alguém pode ganhar, mas sim maximizar o que recebe o mais desfavorecido.

Eis um exemplo, não inédito, de uma reunião de esforços que só depende da vontade dos intervenientes: criar um fundo privado de gestão de arrendamentos que vença a relutância dos proprietários em passarem a ser senhorios, garantindo-lhes uma receita segura (mesmo que não muito alta) e isolando-os das imperfeições do sistema de justiça. Vamos acabar por descobrir que, apesar de tudo, ainda temos dinheiro a mais e só quando o perdermos não restará outro remédio senão sermos racionais.

(publicado no JN de 2010/07/29)

2010/07/16

O passo que falta

Não se prejudique o importante por causa do urgente: a deficiente Justiça e o excesso de regulamentação são os principais problemas de Portugal

Contam os evangelhos que certo jovem, cumpridor dos mandamentos, perguntava a Jesus: “que me falta ainda fazer?”. Muitos dos que conseguem que o fim do mês chegue antes do fim do dinheiro estão com a mesma dúvida. Identificam as causas da situação difícil, mas fica a faltar algo: arriscar algum do seu dinheiro (por pouco que seja) em parceria com aqueles empreendedores que têm projectos mas não capital, sem burocracias nem esperar por enquadramentos institucionais, ajudando assim a economia a progredir. Mas param imediatamente antes desse passo. E o país fica adiado.

Ninguém tem obrigação de ser investidor ou empresário. Contudo, todos os recursos são indispensáveis para garantir o futuro do país onde queremos continuar a viver. Alexandre Soares dos Santos citou há dias uma frase notável: "good judgement comes from experience, and experience comes from bad judgement". Compreendo agora, por ter esbarrado neles, muitos dos bloqueios do país; este é um deles.

Por isso fica o desafio a quem tem património disponível: invistam! Apliquem algum do vosso dinheiro e do vosso tempo. Sem essa postura não há desenvolvimento. Um dos males de Portugal é que até aquilo que não é essencial para a sobrevivência nós temos medo de perder; isso impede a criação de riqueza e deixa-nos tolhidos na nossa pequenez. Damos conselhos aos outros, mas eles que arrisquem... No entanto é possível fazer melhor. Seguramente ganha-se mais conhecimento e, principalmente, abre-se o caminho para a recuperação. Se quem possui consciência dos problemas e os meios para agir não tomar a iniciativa, quem o fará?

Nota final - logo que o Governo mude (já não demorará muito), não se prejudique o importante por causa do urgente: a deficiente Justiça e o excesso de regulamentação são os principais problemas de Portugal.

(publicado no JN de 2010/07/15)

2010/07/02

Drogas por via ocular

Leiam-se os comentários que vão surgindo e constate-se como esta visão do paraíso intoxica até mentes habitualmente lúcidas

Duas notícias recentes ilustram bem os males de que Portugal padece. A primeira relatava que só agora se vão tornar obrigatórios procedimentos de segurança tão absolutamente básicos como confirmar o nome do doente numa operação cirúrgica. Já há tempos se tinha concluído que causa frequente de infecções era a falta de hábito de lavar as mãos entre os profissionais (ou nem tanto...) de saúde. Acrescento eu o inacreditável desleixo com que médicos e enfermeiros circulam nos hospitais, entra e sai desde o bar do edifício às zonas de acesso restrito, com o mesmo calçado e bata com que tratam os doentes. Quem assim age não é ignorante. Pelo contrário, é altamente qualificado, com preparação científica mais que suficiente para compreender os riscos que cria por simples preguiça. Preguiça mental. A visão de todos à sua volta a cometerem os mesmos erros deixa-o alienado.

A segunda notícia dava conta da conquista da Cisco (o gigante mundial das redes de computadores) para um mirabolante projecto localizado em Paredes. Garantem os promotores, com a conivência da autarquia e do Governo, que vai nascer ali uma nova cidade altamente tecnológica, “verde” como se impõe, num investimento que atingirá dez mil milhões de euros. 10.000.000.000! Quantas empresas vão lá estar em 2015? Doze mil, dizem eles. Até agora nem um cêntimo dessa fortuna foi desembolsado por nenhum investidor e a Cisco, mais do que investir, propõe-se vender equipamentos e serviços. Muitos. Faz ela bem, é o seu negócio. A Câmara assegura que consegue financiamento para comprar os terrenos. Afinal Portugal é aquele pequeno país onde houve dinheiro para o Magalhães, porque não para isto também? Leiam-se os comentários que vão surgindo e constate-se como esta visão do paraíso intoxica até mentes habitualmente lúcidas.

(publicado no JN de 2010/07/01)