2010/11/19

Venham os chineses!

Se o Estado, ou alguma entidade financiada por fundos públicos, irresponsavelmente me oferecesse um salário "escandaloso", eu aceitava

Há tempos contava-me uma residente do centro histórico do Porto, transbordando orgulho, como ela e o marido tinham conseguido melhorar a sua casa à custa de “muita pedrinha roubada” a umas obras da câmara que decorriam perto. Fizeram eles bem – não tinham outros recursos e aplicaram com sensatez aqueles que conseguiram de forma pouco convencional. A gestão que a Administração Pública faz dos nossos impostos é em geral tão má que só mesmo com esta revolta civil se conseguirá inverter o rumo.

É por isso que se o Estado, ou alguma entidade financiada por fundos públicos, irresponsavelmente me oferecesse um salário "escandaloso", eu aceitava. E aceitava não apenas sem remorsos, mas por sentido de dever. Tenho a certeza de que esse dinheiro seria utilizado com mais eficácia em benefício público na minha mão do que na do Estado. Do ponto de vista ético, aquilo que realmente me interessaria era usar bem os recursos que, legalmente, tivesse conquistado.

No passado fim de semana morreu um bombeiro na derrocada de um edifício degradado no Porto. Não adianta nada vir agora com a lengalenga das culpas da câmara, do Estado, da lei das rendas, da crise, etc. A verdade é que há quem tenha meios para investir e não o faça. Era possível resolver a situação transformando o problema num bom negócio compatível com os interesses da população local, mas a inércia da nossa iniciativa privada é enorme. O país só será sustentável se conseguir conciliar economia, ambiente e justiça social. Se os portugueses não assumem as suas responsabilidades, enquanto se entretêm a tentar sugar incentivos ao QREN disfarçados de capital de risco (quantos dos inúmeros fundos anunciados estão verdadeiramente activos a aplicar capitais próprios?), outros aproveitarão as oportunidades que estamos a desperdiçar.

(publicado no JN de 2010/11/18)

2010/11/05

Eu não sou eu

Tenho contactado com “velhos pobres” e, na esmagadora maioria dos casos, a situação deles é bem pior do que a dos “novos”

1) Os acontecimentos políticos recentes e a consequente reacção popular lembraram-me aquela anedota absurda do suicida que, antes de se lançar da ponte, gritava “eu não sou eu!” e, quando foram recolher o cadáver, verificaram que de facto não era ele mas sim o primo. É o ex-primeiro-ministro e candidato presidencial a segundo mandato que vê “com muita apreensão o desprestígio da classe política”. É o comentador convicto da urgência de um entendimento entre PS e PSD para combate à crise ao mesmo tempo que reconhece serem inconciliáveis as políticas em causa. É o primeiro-ministro que insiste no cumprimento do défice depois de se ter sistematicamente desleixado nos anos anteriores. É o cidadão anónimo que se queixa do Governo mas, teimoso, contribui para as vitórias do partido que o sustenta. Neste ambiente não admira que Passos Coelho, desejando manter uma saudável democracia interna no PSD, aceitasse um acordo para o Orçamento de Estado. Os militantes do PSD, tal como os restantes portugueses, querem ser enganados pelo Governo escolhendo um “mal menor” que será sempre “mal” mas dificilmente “menor”. Havia dúvidas? Lá veio Sócrates insistir no TGV.

2) Arriscando generalizações injustas, fico sempre de pé atrás quando me falam em “novos pobres”. Tenho contactado com “velhos pobres” e, na esmagadora maioria dos casos, a situação deles é bem pior do que a dos “novos”. Leio notícias de quem recorre a apoio alimentar mas ainda tem carro à porta e usufrui de uma boa casa, e apetece-me trocá-los de situação com os “velhos”. A queda brusca de poder de compra será traumatizante, mas a tolerância para o habitual choradinho das dificuldades financeiras por ausência de cortes radicais nas despesas começa a ser revoltante para quem vive em situação realmente má e continua abandonado.

(publicado no JN de 2010/11/04)