2011/01/28

O Zero

Até era preciso colocar o zero à esquerda do número do bilhete de identidade, senão o eleitor não era encontrado

Há já alguns anos um tio meu, ao procurar o portão de embarque num aeroporto, corredor aqui, porta ali, escada acolá, passou inadvertidamente da zona de acesso público para a reservada a passageiros sem ser submetido a controlo de entrada. Dirigiu-se então a um funcionário, alertando para a falha de segurança. O homem sossegou-o: “não se preocupe, por esse caminho ninguém vem porque não o descobre, só se fosse alguém muito mal intencionado”.

Está a passar-se algo de semelhante com a resistência à substituição dos números fiscal, de BI, segurança social, eleitor, carta de condução, etc., por apenas um. Argumentam com a privacidade e segurança do cidadão perante o Estado, esquecendo que o Estado já possui todos estes dados e só não os cruza (dentro ou fora da lei) se não quiser. Estabeleçam-se antes procedimentos seguros com um único número (já foram estudados), atribuindo permissões limitadas no acesso às várias bases de dados conforme o fim a que se destina.

Com esta profusão de números acontecem trapalhadas como a das eleições. Teria havido “um pico de acessos, um tsunami” que afogou os servidores. Só por total incompetência. Imagine-se que até era preciso colocar o zero à esquerda do número do bilhete de identidade, senão o eleitor não era encontrado! Para menos de 10 milhões de eleitores, num sistema bem montado, a exigência computacional e capacidade de transmissão necessária são baixíssimas. Usando ferramentas desadequadas e programação incompetente, o problema pode tornar-se facilmente 100, 1000, 10000 vezes pior. A informática é mesmo assim. Veja-se em 1998 a anedota da colocação dos professores, relatada em http://shortlinks.etc.pt/profs, quando afinal um velhinho computador de secretária bem configurado resolveu a questão. Nunca se subestime a estupidez humana.

(publicado no JN de 2011/01/27)

2011/01/14

Um chuto na mãe

Isto faz-me lembrar o tempo em que os filhos de senhoras de virtude duvidosa eram considerados menos dignos

No pequeno mundo de quem é alheio aos mexericos sobre celebridades, pícaras ou não, aterram ocasionalmente notícias espantosas. Contava-se há dias que Cristiano Ronaldo se afirmava decidido a impedir que a mãe do seu filho voltasse a vê-lo, já que o tinha “vendido”. Custa ver um extraordinário jogador de futebol revelar ser tão imaturo mas, talvez para lembrar a humildade da natureza humana, é frequente o notável desenvolvimento de alguns dons prejudicar a superação das limitações que com eles coexistem.

Atendendo às imperfeições individuais, as sociedades foram criando mecanismos que nos permitem viver em alguma harmonia. Há leis que regulam o exercício do poder paternal. O sistema de Justiça não pode ser conivente quando uma criança é tratada como objecto propriedade dos pais, que estabelecem um contrato (portanto inválido) sem qualquer consideração pelos direitos do filho. Neste caso não me preocupam os pais, somente o filho. Um filho deve poder conhecer a mãe, agora arrependida do negócio. O resto mete nojo.

Este menor tem a mãe que lhe calhou e tem direito a ela, seja ela oportunista ou apenas jovem inconsciente; ter pais irresponsáveis não o diminui. Não é “vendeu, está vendido”. Isto faz-me lembrar o tempo em que os filhos de senhoras de virtude duvidosa eram considerados menos dignos, como se tivessem culpa dos erros de quem os gerou!

Preocupa-me também a educação do miúdo, que agora será assumida em “outsourcing” pela família do pai, não pelo pai! Duvido que a mãe, dados os precedentes, tenha capacidade para o fazer sem acompanhamento competente. Talvez, caindo em si, ambos cresçam junto com o seu filho e provem, eles sim, ser dignos dessa bênção. Senão, que a Justiça não se afunde em medidas que “paralisam o efeito suspensivo” de outras, como ouvi num telejornal.

(publicado no JN de 2011/01/13)