2011/04/22

Os meus óculos

A geração que teve o mérito de arriscar o 25 de Abril não acabou o trabalho da revolução. Vendo à distância, já muito fez ela.

Percebi há dias que tenho de trocar de óculos. As lentes estão riscadas e a armação já gasta, embora a graduação se mantenha. Consultei várias lojas e constatei dois fenómenos. O primeiro é a moda condicionar de forma brutal os clientes: aparentemente quase não há procura, e portanto escasseia a oferta, de armações para lentes com corte redondo (mais leves para miopia forte); é agora tudo quadrado. Como não sigo telenovelas nem leio crónica social, admito estar desfasado do mundo real. Segundo, o preço das lentes aumentou generalizadamente para o dobro desde 2006 até hoje, o que só se explica por falta de regulação no mercado. Mais um caso de concorrência deficiente.

Mas o que de facto me preocupa é a dificuldade dos portugueses em ver ao longe. Tanta consciência social saída do armário, revoltada com a crise mesmo à frente do nariz, se tinha mantido confortavelmente adormecida quando o sofrimento humano se revelava noutras partes do Mundo! Os gastos supérfluos agora chocam, pelo contraste local. Só agora. Aumenta-se o contraste e fica tudo mais nítido: os recursos abundantes de que apesar de tudo dispomos não devem ser geridos para nosso benefício exclusivo.

Há ex-deputados que se afirmam "excluídos" das listas, como se o lugar no Parlamento fosse um contrato de trabalho sem termo; há quem compare governo e oposição como se o primeiro não tivesse exercido o poder nos últimos anos; há quem se queixe dos credores como se os devedores não fossem os primeiros responsáveis pelas suas dívidas. Se a visão está preguiçosa, talvez a memória ajude. A geração que teve o mérito de arriscar o 25 de Abril não acabou o trabalho da revolução. Vendo à distância, já muito fez ela. Hoje é tempo de completarmos esse esforço, mesmo fora de moda. Que não haja greves à Democracia.

(publicado no JN de 2011/04/21)

2011/04/08

Catequese

O mesmo modelo de autarquia não pode servir em simultâneo para uma freguesia com 2000 habitantes e para outra 20 vezes maior, na mesma cidade

Uma freguesia com 11452 eleitores no Porto será demasiado pequena? É cerca de um quarto dos existentes em Paranhos, um terço dos de Ramalde ou Campanhã, metade dos de Cedofeita, semelhante aos da Foz ou Aldoar. E uma área de 149 hectares? É um quinto de Paranhos ou Campanhã, um quarto de Ramalde, menos que a Foz ou Massarelos, apenas um pouco maior que Santo Ildefonso.

Esta freguesia não existe. Existirá quando se fundirem as actuais quatro freguesias do Centro Histórico: Sé, São Nicolau, Vitória e Miragaia. Em face destes números, e sendo evidente que a diversidade populacional é maior em Paranhos, Campanhã ou Foz do que ali, como se explica a ausência de um novo desenho da divisão do território? Não se trata apenas de sermos poupados (isso acaba por ser um detalhe), mas principalmente de ter dimensão adequada a uma administração local eficaz. O mesmo modelo de autarquia não pode servir em simultâneo para uma freguesia com 2000 habitantes e para outra 20 vezes maior, na mesma cidade.

Tenho insistido neste tipo de reformas desde 2004, outros defendem-no há bastante mais tempo, agora quase todos o consideram inevitável mas ainda não se avançou no Norte. Queixamo-nos. Depois, claro, não é da nossa inércia, a culpa é do centralismo malandro em Lisboa, da ausência de regionalização... É urgente organizarmo-nos para transformar o interior dos partidos, como militantes, sem desistir. A liderança na Política difere da liderança numa empresa, pois a missão é representar os cidadãos e não agir como patrão deles. É que a sociedade civil tem características felinas: uma atitude obediente será natural num cão, mas um gato exige ser convencido a colaborar. Daí que a nível nacional, no meio do ruído, Passos Coelho prepare um programa sensato; Sócrates insiste em berrar ao gato.

(publicado no JN de 2011/04/07)