2010/11/05

Eu não sou eu

Tenho contactado com “velhos pobres” e, na esmagadora maioria dos casos, a situação deles é bem pior do que a dos “novos”

1) Os acontecimentos políticos recentes e a consequente reacção popular lembraram-me aquela anedota absurda do suicida que, antes de se lançar da ponte, gritava “eu não sou eu!” e, quando foram recolher o cadáver, verificaram que de facto não era ele mas sim o primo. É o ex-primeiro-ministro e candidato presidencial a segundo mandato que vê “com muita apreensão o desprestígio da classe política”. É o comentador convicto da urgência de um entendimento entre PS e PSD para combate à crise ao mesmo tempo que reconhece serem inconciliáveis as políticas em causa. É o primeiro-ministro que insiste no cumprimento do défice depois de se ter sistematicamente desleixado nos anos anteriores. É o cidadão anónimo que se queixa do Governo mas, teimoso, contribui para as vitórias do partido que o sustenta. Neste ambiente não admira que Passos Coelho, desejando manter uma saudável democracia interna no PSD, aceitasse um acordo para o Orçamento de Estado. Os militantes do PSD, tal como os restantes portugueses, querem ser enganados pelo Governo escolhendo um “mal menor” que será sempre “mal” mas dificilmente “menor”. Havia dúvidas? Lá veio Sócrates insistir no TGV.

2) Arriscando generalizações injustas, fico sempre de pé atrás quando me falam em “novos pobres”. Tenho contactado com “velhos pobres” e, na esmagadora maioria dos casos, a situação deles é bem pior do que a dos “novos”. Leio notícias de quem recorre a apoio alimentar mas ainda tem carro à porta e usufrui de uma boa casa, e apetece-me trocá-los de situação com os “velhos”. A queda brusca de poder de compra será traumatizante, mas a tolerância para o habitual choradinho das dificuldades financeiras por ausência de cortes radicais nas despesas começa a ser revoltante para quem vive em situação realmente má e continua abandonado.

(publicado no JN de 2010/11/04)