2005/01/04

Vida em sociedade

Ontem apareceu um texto no Causa Nossa sobre uma inacreditável limitação que um condomínio americano pretende impor: não poderão lá habitar crianças menores de 16 anos! Mais tarde defendeu-se no Blasfémias que essa pretensão é legítima... Tive que responder. Recolho aqui de forma mais organizada aquilo que escrevi no debate que houve nos comentários do Blasfémias.

Tomemos um exemplo didáctico igualmente caricatural:
"Não se aceitam pretos neste condomínio. Quem não gostar ou for preto pode ir morar para outro lado."

Find: "preto"
Replace with: "criança"
Qual é a diferença?

Find: "preto"
Replace with: "idoso"
Qual é a diferença?

Find: "preto"
Replace with: "muçulmano"
Qual é a diferença?

Find: "preto"
Replace with: "mulher"
Qual é a diferença?

Find: "preto"
Replace with: "deficiente"
Qual é a diferença?

Cada um pode fazer o que quiser NO SEU espaço privado pessoal, mas não pode ORGANIZAR-SE com outras pessoas para fazer distinções destas num conjunto de propriedades privadas para exclusão de uma classe particular de cidadãos na base da raça, credo, idade, etc. É uma limitação que qualquer sociedade minimamente civilizada deve impor aos cidadãos. Quem quer viver num espaço "limpo de indesejáveis" compra a sua própria moradia. Se estiver num condomínio, sujeita-se às regras gerais da vida em sociedade. Se não tem dinheiro para uma moradia autónoma, isolada, paciência. Não se pode ter tudo na vida. Lá vai ter que conviver com crianças, brancos, pretos, doentes, etc.

A diferença é entre "vida estritamente privada, individual" e "vida em sociedade". "Condomínio" é claramente "vida em sociedade".

Posto noutros termos: situações como esta aqui relatada, em caso de divergência insanável, legitimariam o uso da força bruta por parte de quem se sentir prejudicado, contra o Estado que sustentasse essas leis e contra esses privados.

Esta é uma questão de fundo que só se aprende e aceita ao longo da vida e do nosso aperfeiçoamento pessoal. São valores absolutos, se calhar até axiomáticos. Não compreender este problema da exclusão mesmo no domínio privado é não perceber os fundamentos de uma sociedade civilizada, da democracia. Com humildade e honestidade intelectual, mais tarde ou mais cedo isto percebe-se.

Há uma característica que as pessoas normalmente vão ganhando com a idade. É a capacidade de criar "alertas" eficazes que actuam quando inconscientemente o raciocínio nos leva a exageros insustentáveis, ou quando as acções divergem dos fins a que se destinavam. É isso que nos obriga a pensar de novo (muitas vezes recorrendo a cenários por redução ao absurdo), ou a comparar aquilo que fazemos com o "estado da arte" a que outros já chegaram. É este esforço de humildade e ponderação que posteriormente sustenta o nosso progresso. Chama-se a essa característica "maturidade".

PS: Ler também Vital Moreira.

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