2005/12/23

A resposta de Miguel Cadilhe

Miguel Cadilhe teve a amabilidade de responder aos comentários que publiquei anteriormente sobre o seu mais recente livro. Aqui fica, com a devida autorização, o texto que recebi. Cabe-me agora a responsabilidade de tentar contra-argumentar no que respeita aos pontos sobre os quais mantenho alguma discordância. Os meus parabéns a Miguel Cadilhe pela abertura que demonstra ao aceitar debater na blogosfera (e comigo!) as suas propostas - revela desta forma qualidades invulgares em pessoas com um curriculum tão vasto como o seu.

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Caro Tiago Azevedo Fernandes

Muito obrigado pela atenção que TAF dedicou ao meu livro, gesto que muito me aprouve registar.
Faço algumas observações e gostaria de começar por lhe fazer um pedido.
Quererá TAF pf afastar o termo “estatista”?
Porque, desculpar-me-á que o diga, o uso que dele faz é, definitivamente, indevido e impróprio.
Talvez haja um mal-entendido.

Como TAF bem sabe, e como nos é revelado, relevado pela história e pela doutrina, a “estatização” envolve níveis, ritmos e tendências relativamente elevados do papel do Estado. Em diversos graus, significa mais dimensão do Estado. Mais apropriação e expropriação dos meios de produção. Mais subalternização do sector privado, do mercado e da sociedade civil. Mais extensividade e intensividade de funções do sector público. Mais dirigismo da economia. Mais poder e mais intervencionismo dos burocratas e dos políticos centrais. Maiores rácios DCP/PIB e RF/PIB (despesas correntes primárias e carga fiscal, a que dou especial protagonismo no livro).

Ora, TAF bem vê, isso é antagónico de tudo o que penso e digo no livro.

Desde logo, isso parece-me absolutamente inconciliável com o objectivo de reduzir a dimensão corrente relativa do Estado para cerca de 3/4 ou 2/3 dos níveis actuais, como proponho no livro (p 45, etc).
Como é possível que TAF detecte «uma visão estatista» nas minhas ideias?
Reduzir a escala corrente do Estado não é, claro que não é, «assumir uma visão “estatista” das reformas necessárias no Sector Público Administrativo (SPA)».
É certo que TAF usa o termo “estatista” «no sentido de acreditar na capacidade do Estado ao seu mais alto nível, ainda que com contributos externos, gerir esta mudança».
TAF não acredita nessa capacidade.

Eu também tenho, todos temos dúvidas sobre a real vontade e a real capacidade de auto-reforma do Estado. De algum modo, é sobre isso que falo na conclusão, no último número do livro.

Todavia, se não for auto-reforma, o que poderá ser?
De facto, a mudança só poderá acontecer por uma de três vias (haverá mais alguma?), ou um misto delas:
  • a) Ou porque o Estado se auto-reforme e se auto-contenha e se auto-modernize;
  • b) Ou porque haja uma rotura, uma revolução, um golpe de Estado, uma alteração do regime político, ou qualquer coisa do género… - de que, no nosso caso, pelo menos numa primeira fase, poderia resultar mais Estado;
  • c) Ou porque haja uma forte imposição externa ou um imperativo decorrente de pacto ou tratado supranacional (que não há).
É em a) que o meu livro se localiza. Não obstante haver dilemas do reformador. Tibiezas de políticos. Conservadorismos de burocratas e sindicalistas.

A via a), o seu sucesso e a sua velocidade e profundidade poderão ser especialmente potenciados pela pressão de uma sociedade civil consciente das necessidades de reforma do Estado (a que TAF se refere, e bem, várias vezes, neste e noutros textos).

Aí, em a), b), c), onde se localizará TAF?
Reconhece TAF: «trata-se contudo de uma reforma comandada pelo Estado e pelos decisores políticos. Não poderia aliás ser de outro modo numa sociedade democrática» (sublinhado meu). Tal e qual, estamos de acordo. Uma auto-reforma. A via a).

Como reduzir o peso do Estado em poucos anos?
Diz TAF: «devemos por agora reduzi-lo em direcção ao “Estado mínimo”, sem lhe entregar mais um cêntimo, até que se consiga alcançar uma boa qualidade da gestão dos recursos públicos» (sublinhado meu).
Não diz TAF como se haveria de pagar esse esforço de redução. Porque seria preciso pagar muita, muita coisa para que a redução se processasse em respeito da dignidade das pessoas e sem violação de seus direitos. E sem quebras de funcionalidades essenciais. E com melhorias de produtividade e eficiência. E com mais qualidade e com “níveis de serviço” mais elevados nas áreas irredutíveis do Estado e nas demais áreas públicas...

Segundo a minha proposta no livro, para reduzir 1/4 ou 1/3 do Estado seria preciso realizar e pagar:
  • rescisões amigáveis de pessoal com correlativas indemnizações,
  • auditorias externas de funções e regimes,
  • formação e reafectação de pessoal,
  • reequipamentos, desmaterializações de processos, modernização de serviços, etc, etc.
Ou seja, para se reduzir a escala corrente do Estado (DCP/PIB e RF/PIB) e modernizá-lo, seria incontornável investir (digo investir) muitas centenas de milhão de euros. Não há aqui contradição. Há conhecimento das coisas e há estratégia.
Reduzir-se-ia a dimensão corrente primária do Estado, para um novo nível estabilizado e não reversível. Para isso, aumentar-se-ia temporariamente o investimento público, corpóreo e incorpóreo.
Como se financiaria isto? Proponho o FEI, fundo extraordinário de investimento.

TAF parece dizer sim à redução do Estado, mas dizer não ao pagamento das temporárias inerências e decorrências dessa redução.
Desculpar-me-á a perplexidade. Sol na eira e chuva no nabal? Omeletas sem ovos? Alongamento no tempo, indefinidamente, de uma tal redução do Estado? Hiper-gradualismo na execução das mudanças?

Acho que o hiper-gradualismo é inimigo das autênticas reformas.

Quanto ao ouro, sabemos todos que o BP o está a vender, ano após ano.
E, no livro, apenas falo em usar os lucros da venda para pagar parte das reformas conceituais e administrativas do Estado, ficando no BP o valor base do ouro, obviamente convertido noutro tipo de activos.

Quanto às “receitas” de TAF, nada tenho a opor a elas, salvo a “receita” 3). Esta implicaria, a meu ver, alguns sérios riscos e dificuldades.
Por exemplo, desrazoabilidade de algumas propostas de redução de serviços, motivadas pelo ganho do proponente.
Por exemplo, ainda, insuficiência, em muitos casos, do regime de pricing (“A sua remuneração seria também exclusivamente função das poupanças e ganhos de eficiência conseguidos”) e inconveniente dos tempos de espera de confirmação de efeitos.

Espero que veja nestas minhas anotações alguma utilidade e o meu muito apreço.
Abraço e muitos cumprimentos, os melhores votos de Bom Natal.

Miguel Cadilhe