A geração que teve o mérito de arriscar o 25 de Abril não acabou o trabalho da revolução. Vendo à distância, já muito fez ela.
Percebi há dias que tenho de trocar de óculos. As lentes estão riscadas e a armação já gasta, embora a graduação se mantenha. Consultei várias lojas e constatei dois fenómenos. O primeiro é a moda condicionar de forma brutal os clientes: aparentemente quase não há procura, e portanto escasseia a oferta, de armações para lentes com corte redondo (mais leves para miopia forte); é agora tudo quadrado. Como não sigo telenovelas nem leio crónica social, admito estar desfasado do mundo real. Segundo, o preço das lentes aumentou generalizadamente para o dobro desde 2006 até hoje, o que só se explica por falta de regulação no mercado. Mais um caso de concorrência deficiente.
Mas o que de facto me preocupa é a dificuldade dos portugueses em ver ao longe. Tanta consciência social saída do armário, revoltada com a crise mesmo à frente do nariz, se tinha mantido confortavelmente adormecida quando o sofrimento humano se revelava noutras partes do Mundo! Os gastos supérfluos agora chocam, pelo contraste local. Só agora. Aumenta-se o contraste e fica tudo mais nítido: os recursos abundantes de que apesar de tudo dispomos não devem ser geridos para nosso benefício exclusivo.
Há ex-deputados que se afirmam "excluídos" das listas, como se o lugar no Parlamento fosse um contrato de trabalho sem termo; há quem compare governo e oposição como se o primeiro não tivesse exercido o poder nos últimos anos; há quem se queixe dos credores como se os devedores não fossem os primeiros responsáveis pelas suas dívidas. Se a visão está preguiçosa, talvez a memória ajude. A geração que teve o mérito de arriscar o 25 de Abril não acabou o trabalho da revolução. Vendo à distância, já muito fez ela. Hoje é tempo de completarmos esse esforço, mesmo fora de moda. Que não haja greves à Democracia.
(publicado no JN de 2011/04/21)