Não posso deixar de achar preocupante a aparente segurança e convicção com que comentadores justamente prestigiados (veja-se o Abrupto ou o Causa Nossa) interpretam o "sentimento do povo".
Vem isto a propósito de que as pessoas supostamente não votam tanto nos partidos, mas mais nos respectivos líderes. E que por isso, mudando o líder, há um conjunto fundamental de pressupostos que mudam. Por exemplo, escreveu Pacheco Pereira:
"E por isso me sinto traído, como aliás muita gente que talvez não o diga com esta clareza. Porque há várias coisas de que eu tenho a certeza. Eu não votei nas últimas legislativas no Governo que aí vem. Eu não votei nas últimas legislativas numa coligação PSD-PP, muito menos num governo PPD-PP. Eu não apoiei Durão Barroso para me sair Santana Lopes. O voto, mesmo para os intelectuais e "comentaristas", como se diz agora com desprezo, não tem nenhuma sofisticação especial. O voto, aliás, tem essa virtude de ser simples e inequívoco, uma escolha. E eu, como muita gente no PSD e no país, nunca fiz a que agora me querem impor. Este é o "golpe de Estado" de que fala Manuela Ferreira Leite. Tem a ver com a substância, não com os estatutos."
É perfeitamente aceitável esta posição. Cada um sabe por que votou. Contudo, já ninguém tem autoridade para saber por que razão "o povo" fez a escolha que fez. Se votou a pensar no partido como um todo ou se foi uma escolha mais individualizada na pessoa do líder. Ou então se o voto nas europeias foi um voto de castigo quanto à política interna. Podemos ter convicções fortes quanto a isso, mas não basta. Não temos certezas absolutas. Não podemos invocar uma interpretação destas para, por exemplo, exigir eleições antecipadas.
Temos de nos habituar a cumprir as regras de convivência em sociedade. Uma dessas regras diz que nas eleições legislativas as pessoas votam em partidos para eleger deputados e que com base no suporte parlamentar e na intervenção do Presidente da República deve ser formado um Governo. Tudo o resto são interpretações subjectivas (mesmo que eventualmente correctas) que não podem substituir a escolha real (certa ou errada) que resultou das eleições.
Sendo assim, independentemente de simpatias políticas ou pessoais, não estou a ver razões para não se aceitar à partida um Governo proposto por uma maioria parlamentar nas circunstâncias actuais.
PS: Esqueci-me de dizer que _eu_ votei num partido e não no respectivo líder (embora naturalmente não me seja indiferente a pessoa em causa). E quando votei nas europeias foi por causa do Parlamento Europeu e não da Assembleia da República. Eu próprio sou por isso um exemplo de que por vezes as pessoas realmente votam naquilo que é suposto votarem e não usam esse direito para passar outra mensagem qualquer. ;-)
Reconheço, como é de Lei, que o Presidente da República tem a capacidade de tomar medidas "radicais" numa situação de gravidade verdadeiramente excepcional que as justifique. Eu não vejo tal gravidade precisamente porque não me atrevo a assumir como correcta a _minha_ interpretação daquilo que os eleitores realmente poderiam querer exprimir com a opção que tomaram. Privilegio neste caso a "letra" e não o suposto "espírito". Por que é que se admite que os portugueses querem "avaliar o desempenho destes dois anos de governação, da equipa que irá cessar funções"? Como é que se sabe que não preferem que termine normalmente a legislatura, uma vez que foi para uma legislatura de 4 anos que votaram?