Dizem que é um apartamento no Centro Histórico. Que vou ser vizinha do Bispo, dos traficantes da Bainharia e do Mercado de São Sebastião.
Comecei a desconfiar quando eles desarrumaram tudo. Livros no chão, móveis desmontados, idas ao Ikea, tralhas no carro ao fim de semana. Fiquei preocupada quando chegou a encomenda de um saco para transporte de gatos e ele me convidou a experimentá-lo “para me ir habituando” e me avisou de que passaria a viajar de metro. Mas enfim, se ele e ela se meteram em mudanças...
Dizem que é um apartamento no Centro Histórico. Que se chega lá por escadas, que me vou divertir na janela a ver gaivotas, barcos no Douro, turistas a fotografar da ponte com inveja por haver gente a morar num sítio daqueles. Que vou conhecer cheiros novos, sentir o vento soprar mais forte e ouvir ao fundo, lá em baixo, a animação na Ribeira. Que vou ser vizinha do Bispo, dos traficantes da Bainharia e do Mercado de São Sebastião.
Espantou-me tal novidade ante a ameaça de sermos roubados pelo Estado com mais e mais impostos, mas afinal eles até poupam porque ainda apanharam o tempo em que os bancos julgavam ser sólidos. Créditos a spread baixo, para 100% ou mais do valor da habitação, secaram o financiamento a outros negócios que não fossem garantidos pela hipoteca de um imóvel supostamente “seguro”. Os bancos continuam sem saber calcular o risco com base no perfil concreto do cliente e nas características específicas da operação que propõe, não apenas nos números que um funcionário despeja no computador sem perceber que cada crédito é diferente. Se o país se afundar, o sector financeiro também não irá escapar...
Eles agora procuram investidores privados (os bancos estão noutra onda) para novas (tantas!) oportunidades de reabilitação destinada a arrendamento no Centro Histórico do Porto. O metro é bom, mas uma gata prefere passeios curtos. Quanto mais amigos e família morarem nas redondezas, melhor.
(publicado no JN de 2010/10/07)
2010/10/08
2010/09/24
Roubaram-me a bicicleta
Está certa alguma esquerda quando diz que os salários devem subir apesar da crise, o que ajudará a acelerar o fecho das empresas inviáveis como defende alguma direita sensata
Há cada vez menos diferença entre quem é de esquerda e quem é de direita, pois o disparate e a razão vêm indistintamente do lado a que se afirma pertencer. Apesar de subsistirem diferenças ideológicas adaptadas aos tempos actuais, prefiro uma classificação alternativa: os que sabem ouvir e os que se refugiam nos seus preconceitos.
Saber ouvir leva a reconhecer que está certa alguma esquerda quando diz que os salários (os pequenos e médios, não os grandes) devem subir apesar da crise, o que colocará mais dinheiro a circular na economia e ajudará a acelerar o fecho das empresas inviáveis como defende alguma direita sensata. Já não vamos a tempo de soluções simpáticas, restam-nos as eficazes.
Trabalhadores insatisfeitos são de produtividade medíocre, com a qual não é viável sucesso duradouro. Negócios baseados na mão-de-obra barata são portanto suicidas (insustentáveis) e também assassinos das empresas que propõem preços realistas aos potenciais clientes, pois não sobrevivem ao verdadeiro “dumping social” praticado pela concorrência.
Tem razão alguma direita ao insistir na diminuição drástica do peso do Estado e do défice público, para que não sejam sugados os recursos da iniciativa privada. Tem razão alguma esquerda ao sublinhar a importância do exemplo do Estado para a recuperação da economia, desde que isso implique passar a mostrar competência nas áreas onde o seu desempenho é agora vergonhoso. Quando não se consegue sequer evitar que seja roubada durante as horas de expediente uma bicicleta acorrentada num espaço tão frequentado como a Biblioteca Almeida Garrett, no Palácio de Cristal, é bom que direita e esquerda se interroguem sobre os resultados das políticas que defendem sem o recomendável esforço de compreender as posições dos seus adversários.
(publicado no JN de 2010/09/23)
Há cada vez menos diferença entre quem é de esquerda e quem é de direita, pois o disparate e a razão vêm indistintamente do lado a que se afirma pertencer. Apesar de subsistirem diferenças ideológicas adaptadas aos tempos actuais, prefiro uma classificação alternativa: os que sabem ouvir e os que se refugiam nos seus preconceitos.
Saber ouvir leva a reconhecer que está certa alguma esquerda quando diz que os salários (os pequenos e médios, não os grandes) devem subir apesar da crise, o que colocará mais dinheiro a circular na economia e ajudará a acelerar o fecho das empresas inviáveis como defende alguma direita sensata. Já não vamos a tempo de soluções simpáticas, restam-nos as eficazes.
Trabalhadores insatisfeitos são de produtividade medíocre, com a qual não é viável sucesso duradouro. Negócios baseados na mão-de-obra barata são portanto suicidas (insustentáveis) e também assassinos das empresas que propõem preços realistas aos potenciais clientes, pois não sobrevivem ao verdadeiro “dumping social” praticado pela concorrência.
Tem razão alguma direita ao insistir na diminuição drástica do peso do Estado e do défice público, para que não sejam sugados os recursos da iniciativa privada. Tem razão alguma esquerda ao sublinhar a importância do exemplo do Estado para a recuperação da economia, desde que isso implique passar a mostrar competência nas áreas onde o seu desempenho é agora vergonhoso. Quando não se consegue sequer evitar que seja roubada durante as horas de expediente uma bicicleta acorrentada num espaço tão frequentado como a Biblioteca Almeida Garrett, no Palácio de Cristal, é bom que direita e esquerda se interroguem sobre os resultados das políticas que defendem sem o recomendável esforço de compreender as posições dos seus adversários.
(publicado no JN de 2010/09/23)
2010/09/09
Portugal descalibrado
Quando melhorarmos a nossa casa, a nossa rua, o nosso bairro, descobriremos que afinal também temos força para curar o país
Do ponto de vista de cada um de nós, os outros evoluem em média demasiado devagar. A sociedade é sempre mais lenta do que o indivíduo mas, na dose certa, esta inércia é positiva porque filtra aquilo que não resiste ao teste do tempo. Acontece que Portugal está descalibrado, perdeu a noção dos prazos, deixou-se atrasar de forma aflitiva. Por exemplo, hoje é o último dia para Cavaco conseguir terminar o seu mandato com dignidade, mas não vejo significativo desconforto na população com a eventualidade de falhar. Não por causa dele, mas pelo país.
Acabada a ilusão do futebol, não surpreende o desespero de quem está consciente do abismo para o qual caminhamos. Daí que surjam apelos a uma actuação radical (no bom sentido) por parte da Oposição, e em particular de Passos Coelho. Contudo, os dirigentes do partido não são os donos do partido. O PSD, tal como os outros, não é muito diferente do país. E se o país não está convencido de que são precisas mudanças muito profundas, nenhum partido conseguirá implantá-las. A abordagem terá de ser realista em face do que é socialmente aceitável. Eu teria provavelmente ido mais longe na “ousadia” das propostas mesmo sob o risco de alguma incompreensão social, desde que essa “ousadia” não fosse de tal ordem que se tornasse contraproducente. E o risco é mesmo esse.
É preciso envolver a população em acções que tornem evidente o poder individual, quando devidamente organizado e integrado em esforços colectivos. Nada melhor do que a reabilitação urbana, passo a passo, para o provar. Não é o estado da economia que dificulta o progresso, mas sim a deficiente colaboração entre os privados com competências complementares. Quando melhorarmos a nossa casa, a nossa rua, o nosso bairro, descobriremos que afinal também temos força para curar o país.
(publicado no JN de 2010/09/09)
Do ponto de vista de cada um de nós, os outros evoluem em média demasiado devagar. A sociedade é sempre mais lenta do que o indivíduo mas, na dose certa, esta inércia é positiva porque filtra aquilo que não resiste ao teste do tempo. Acontece que Portugal está descalibrado, perdeu a noção dos prazos, deixou-se atrasar de forma aflitiva. Por exemplo, hoje é o último dia para Cavaco conseguir terminar o seu mandato com dignidade, mas não vejo significativo desconforto na população com a eventualidade de falhar. Não por causa dele, mas pelo país.
Acabada a ilusão do futebol, não surpreende o desespero de quem está consciente do abismo para o qual caminhamos. Daí que surjam apelos a uma actuação radical (no bom sentido) por parte da Oposição, e em particular de Passos Coelho. Contudo, os dirigentes do partido não são os donos do partido. O PSD, tal como os outros, não é muito diferente do país. E se o país não está convencido de que são precisas mudanças muito profundas, nenhum partido conseguirá implantá-las. A abordagem terá de ser realista em face do que é socialmente aceitável. Eu teria provavelmente ido mais longe na “ousadia” das propostas mesmo sob o risco de alguma incompreensão social, desde que essa “ousadia” não fosse de tal ordem que se tornasse contraproducente. E o risco é mesmo esse.
É preciso envolver a população em acções que tornem evidente o poder individual, quando devidamente organizado e integrado em esforços colectivos. Nada melhor do que a reabilitação urbana, passo a passo, para o provar. Não é o estado da economia que dificulta o progresso, mas sim a deficiente colaboração entre os privados com competências complementares. Quando melhorarmos a nossa casa, a nossa rua, o nosso bairro, descobriremos que afinal também temos força para curar o país.
(publicado no JN de 2010/09/09)
2010/08/27
Meu caro Aníbal
A maneira mais construtiva de terminares o teu mandato é apressares essa mudança no parlamento e, por fim, não te recandidatares
Com a sabedoria da respeitável idade de 13 anos, passo os dias a meditar repousando na travesseira à janela. Arrependo-me de não ter actuado mais cedo, nos meus tempos de juventude. A situação do país é grave e tu não tens ajudado o suficiente. Observo o meu mundo com atenção, possuo o distanciamento conveniente para ver as consequências daquilo que fazes e, principalmente, daquilo que não fazes.
Não basta seres bem intencionado para o exercício das tuas funções ter um efeito positivo. Entre as causas dos problemas nacionais está a maneira como a tua geração pensou que bastaria entregar a Política a um pequeno número de pessoas “credíveis” para haver desenvolvimento sólido. Vindo de uma tradição salazarista, o país quis ser comandado pelo Estado. Só que a sociedade civil não funciona bem quando é comandada. Repara como eu não me deixo dominar nem sequer pelas pessoas aqui de casa, de quem tanto gosto. Isso não impede uma relação muito feliz. Por um lado tenho acesso de qualidade aos serviços indispensáveis - comida e água fresca à disposição, cuidados de saúde quando necessário, habitação confortável, mimos em doses maciças; por outro respeito as regras de convivência, não provoco despesa excessiva, cumpro com grande produtividade a minha missão de dar alegria e bom ambiente à família. Cada um no seu lugar.
Grande parte da tua geração nunca vai compreender que o que está errado não é uma medida ou outra do Governo, é mesmo a forma como se governa. Aquelas pessoas têm de ser substituídas para deixar o país respirar melhor. Por isso a maneira mais construtiva de terminares o teu mandato é apressares essa mudança no parlamento e, por fim, não te recandidatares. Faz como eu: aprende a gozar o conforto de uma mantinha fofa.
Aceita os cumprimentos da FM, uma gata portuense.
(publicado no JN de 2010/08/26)
Com a sabedoria da respeitável idade de 13 anos, passo os dias a meditar repousando na travesseira à janela. Arrependo-me de não ter actuado mais cedo, nos meus tempos de juventude. A situação do país é grave e tu não tens ajudado o suficiente. Observo o meu mundo com atenção, possuo o distanciamento conveniente para ver as consequências daquilo que fazes e, principalmente, daquilo que não fazes.
Não basta seres bem intencionado para o exercício das tuas funções ter um efeito positivo. Entre as causas dos problemas nacionais está a maneira como a tua geração pensou que bastaria entregar a Política a um pequeno número de pessoas “credíveis” para haver desenvolvimento sólido. Vindo de uma tradição salazarista, o país quis ser comandado pelo Estado. Só que a sociedade civil não funciona bem quando é comandada. Repara como eu não me deixo dominar nem sequer pelas pessoas aqui de casa, de quem tanto gosto. Isso não impede uma relação muito feliz. Por um lado tenho acesso de qualidade aos serviços indispensáveis - comida e água fresca à disposição, cuidados de saúde quando necessário, habitação confortável, mimos em doses maciças; por outro respeito as regras de convivência, não provoco despesa excessiva, cumpro com grande produtividade a minha missão de dar alegria e bom ambiente à família. Cada um no seu lugar.
Grande parte da tua geração nunca vai compreender que o que está errado não é uma medida ou outra do Governo, é mesmo a forma como se governa. Aquelas pessoas têm de ser substituídas para deixar o país respirar melhor. Por isso a maneira mais construtiva de terminares o teu mandato é apressares essa mudança no parlamento e, por fim, não te recandidatares. Faz como eu: aprende a gozar o conforto de uma mantinha fofa.
Aceita os cumprimentos da FM, uma gata portuense.
(publicado no JN de 2010/08/26)
2010/08/13
Já não há gente normal
Insisto nisto desde 2003: a primeira de todas as prioridades é a Justiça - tribunais a funcionar, leis e regulamentos simples. Não é a Economia nem a Educação.
Um país está doente quando tantos comportamentos irracionais ou insensatos atingem o estatuto de alguma respeitabilidade, como se não fossem apenas merecedores da gargalhada geral. O fim dos chumbos nas escolas porque o apoio extra resolveria as dificuldades (o que acontece nos casos em que não resolve?); a barragem do Tua que poderia afogar o caminho de ferro mesmo sendo ele património classificado; as crianças que são proibidas de usar escova de dentes nos infantários supostamente para evitar a propagação de doenças (será que elas são deixadas ao abandono nos balneários?); a banda gástrica que é recomendada por médicos para “tratar” a obesidade (como se o problema fosse no estômago e não do foro mental!); o PGR que manda mas não manda e continua no lugar.
Este ambiente de doidos quase branqueia outros disparates. Vende-se património estatal porque, ante o descontrolo da despesa, “não há outro remédio agora”; em breve estaremos na mesma situação mas já sem nada para vender. Recomenda-se baixa de salários como remédio para a fraca produtividade; por este andar recorre-se a trabalho escravo para salvar a economia.
Insisto nisto desde 2003: a primeira de todas as prioridades é a Justiça - tribunais a funcionar, leis e regulamentos simples. Não é a Economia nem a Educação. Deixamos de mudar o que é realmente grave (estrutural) para correr atrás do que é apenas agudo. Sem a Justiça o resto não é suficiente, mas com ela a sociedade civil já tem as ferramentas para obrigar o Estado a curar-se.
Passos Coelho, que não é dono do PSD nem representado pelos seus colaboradores, constrói a alternativa a Sócrates e, entretando, tenta impedir as asneiras mais dramáticas do Governo. O Presidente da República é que já devia ter dissolvido este Parlamento que gerou um Governo moribundo.
(publicado no JN de 2010/08/12)
Um país está doente quando tantos comportamentos irracionais ou insensatos atingem o estatuto de alguma respeitabilidade, como se não fossem apenas merecedores da gargalhada geral. O fim dos chumbos nas escolas porque o apoio extra resolveria as dificuldades (o que acontece nos casos em que não resolve?); a barragem do Tua que poderia afogar o caminho de ferro mesmo sendo ele património classificado; as crianças que são proibidas de usar escova de dentes nos infantários supostamente para evitar a propagação de doenças (será que elas são deixadas ao abandono nos balneários?); a banda gástrica que é recomendada por médicos para “tratar” a obesidade (como se o problema fosse no estômago e não do foro mental!); o PGR que manda mas não manda e continua no lugar.
Este ambiente de doidos quase branqueia outros disparates. Vende-se património estatal porque, ante o descontrolo da despesa, “não há outro remédio agora”; em breve estaremos na mesma situação mas já sem nada para vender. Recomenda-se baixa de salários como remédio para a fraca produtividade; por este andar recorre-se a trabalho escravo para salvar a economia.
Insisto nisto desde 2003: a primeira de todas as prioridades é a Justiça - tribunais a funcionar, leis e regulamentos simples. Não é a Economia nem a Educação. Deixamos de mudar o que é realmente grave (estrutural) para correr atrás do que é apenas agudo. Sem a Justiça o resto não é suficiente, mas com ela a sociedade civil já tem as ferramentas para obrigar o Estado a curar-se.
Passos Coelho, que não é dono do PSD nem representado pelos seus colaboradores, constrói a alternativa a Sócrates e, entretando, tenta impedir as asneiras mais dramáticas do Governo. O Presidente da República é que já devia ter dissolvido este Parlamento que gerou um Governo moribundo.
(publicado no JN de 2010/08/12)
2010/07/30
Donos do alheio
Preocupação social sensata não é limitar o máximo que alguém pode ganhar, mas sim maximizar o que recebe o mais desfavorecido
Multiplicam-se as movimentações para conquistar o direito de gerir património alheio. A vários anos de distância, sugerem-se nomes para a presidência da Câmara do Porto, transformada em assunto nacional por causa da corrida perdida da Red Bull; os meios regionalistas nortenhos animam-se com a esperança de que um novo partido, ele sim diferente dos outros, conquiste um nível de governo local; até um respeitado bispo, num entusiasmo reivindicativo, reclama 20% do salário de uma classe profissional muito desacreditada.
Comum a tudo isto é o esquecimento da acção individual a nível privado, empurrando os problemas para os recursos do Estado ou de outrem. Custa-me debater candidaturas a funções públicas sem pensar no projecto em que aí se deverá trabalhar. Custa-me ver um potencial partido esgotar a sua missão na exigência de uma reorganização territorial, quando esse objectivo poderia ser defendido transversalmente dentro das várias forças políticas já existentes. Custa-me “confiscar” 20% seja lá do que for aos políticos, e não também aos engenheiros, aos advogados, aos pescadores, aos membros do clero, ou até aos falsos recibos verdes que Serralves agora acabou por reconhecer. Preocupação social sensata não é limitar o máximo que alguém pode ganhar, mas sim maximizar o que recebe o mais desfavorecido.
Eis um exemplo, não inédito, de uma reunião de esforços que só depende da vontade dos intervenientes: criar um fundo privado de gestão de arrendamentos que vença a relutância dos proprietários em passarem a ser senhorios, garantindo-lhes uma receita segura (mesmo que não muito alta) e isolando-os das imperfeições do sistema de justiça. Vamos acabar por descobrir que, apesar de tudo, ainda temos dinheiro a mais e só quando o perdermos não restará outro remédio senão sermos racionais.
(publicado no JN de 2010/07/29)
Multiplicam-se as movimentações para conquistar o direito de gerir património alheio. A vários anos de distância, sugerem-se nomes para a presidência da Câmara do Porto, transformada em assunto nacional por causa da corrida perdida da Red Bull; os meios regionalistas nortenhos animam-se com a esperança de que um novo partido, ele sim diferente dos outros, conquiste um nível de governo local; até um respeitado bispo, num entusiasmo reivindicativo, reclama 20% do salário de uma classe profissional muito desacreditada.
Comum a tudo isto é o esquecimento da acção individual a nível privado, empurrando os problemas para os recursos do Estado ou de outrem. Custa-me debater candidaturas a funções públicas sem pensar no projecto em que aí se deverá trabalhar. Custa-me ver um potencial partido esgotar a sua missão na exigência de uma reorganização territorial, quando esse objectivo poderia ser defendido transversalmente dentro das várias forças políticas já existentes. Custa-me “confiscar” 20% seja lá do que for aos políticos, e não também aos engenheiros, aos advogados, aos pescadores, aos membros do clero, ou até aos falsos recibos verdes que Serralves agora acabou por reconhecer. Preocupação social sensata não é limitar o máximo que alguém pode ganhar, mas sim maximizar o que recebe o mais desfavorecido.
Eis um exemplo, não inédito, de uma reunião de esforços que só depende da vontade dos intervenientes: criar um fundo privado de gestão de arrendamentos que vença a relutância dos proprietários em passarem a ser senhorios, garantindo-lhes uma receita segura (mesmo que não muito alta) e isolando-os das imperfeições do sistema de justiça. Vamos acabar por descobrir que, apesar de tudo, ainda temos dinheiro a mais e só quando o perdermos não restará outro remédio senão sermos racionais.
(publicado no JN de 2010/07/29)
2010/07/16
O passo que falta
Não se prejudique o importante por causa do urgente: a deficiente Justiça e o excesso de regulamentação são os principais problemas de Portugal
Contam os evangelhos que certo jovem, cumpridor dos mandamentos, perguntava a Jesus: “que me falta ainda fazer?”. Muitos dos que conseguem que o fim do mês chegue antes do fim do dinheiro estão com a mesma dúvida. Identificam as causas da situação difícil, mas fica a faltar algo: arriscar algum do seu dinheiro (por pouco que seja) em parceria com aqueles empreendedores que têm projectos mas não capital, sem burocracias nem esperar por enquadramentos institucionais, ajudando assim a economia a progredir. Mas param imediatamente antes desse passo. E o país fica adiado.
Ninguém tem obrigação de ser investidor ou empresário. Contudo, todos os recursos são indispensáveis para garantir o futuro do país onde queremos continuar a viver. Alexandre Soares dos Santos citou há dias uma frase notável: "good judgement comes from experience, and experience comes from bad judgement". Compreendo agora, por ter esbarrado neles, muitos dos bloqueios do país; este é um deles.
Por isso fica o desafio a quem tem património disponível: invistam! Apliquem algum do vosso dinheiro e do vosso tempo. Sem essa postura não há desenvolvimento. Um dos males de Portugal é que até aquilo que não é essencial para a sobrevivência nós temos medo de perder; isso impede a criação de riqueza e deixa-nos tolhidos na nossa pequenez. Damos conselhos aos outros, mas eles que arrisquem... No entanto é possível fazer melhor. Seguramente ganha-se mais conhecimento e, principalmente, abre-se o caminho para a recuperação. Se quem possui consciência dos problemas e os meios para agir não tomar a iniciativa, quem o fará?
Nota final - logo que o Governo mude (já não demorará muito), não se prejudique o importante por causa do urgente: a deficiente Justiça e o excesso de regulamentação são os principais problemas de Portugal.
(publicado no JN de 2010/07/15)
Contam os evangelhos que certo jovem, cumpridor dos mandamentos, perguntava a Jesus: “que me falta ainda fazer?”. Muitos dos que conseguem que o fim do mês chegue antes do fim do dinheiro estão com a mesma dúvida. Identificam as causas da situação difícil, mas fica a faltar algo: arriscar algum do seu dinheiro (por pouco que seja) em parceria com aqueles empreendedores que têm projectos mas não capital, sem burocracias nem esperar por enquadramentos institucionais, ajudando assim a economia a progredir. Mas param imediatamente antes desse passo. E o país fica adiado.
Ninguém tem obrigação de ser investidor ou empresário. Contudo, todos os recursos são indispensáveis para garantir o futuro do país onde queremos continuar a viver. Alexandre Soares dos Santos citou há dias uma frase notável: "good judgement comes from experience, and experience comes from bad judgement". Compreendo agora, por ter esbarrado neles, muitos dos bloqueios do país; este é um deles.
Por isso fica o desafio a quem tem património disponível: invistam! Apliquem algum do vosso dinheiro e do vosso tempo. Sem essa postura não há desenvolvimento. Um dos males de Portugal é que até aquilo que não é essencial para a sobrevivência nós temos medo de perder; isso impede a criação de riqueza e deixa-nos tolhidos na nossa pequenez. Damos conselhos aos outros, mas eles que arrisquem... No entanto é possível fazer melhor. Seguramente ganha-se mais conhecimento e, principalmente, abre-se o caminho para a recuperação. Se quem possui consciência dos problemas e os meios para agir não tomar a iniciativa, quem o fará?
Nota final - logo que o Governo mude (já não demorará muito), não se prejudique o importante por causa do urgente: a deficiente Justiça e o excesso de regulamentação são os principais problemas de Portugal.
(publicado no JN de 2010/07/15)
2010/07/02
Drogas por via ocular
Leiam-se os comentários que vão surgindo e constate-se como esta visão do paraíso intoxica até mentes habitualmente lúcidas
Duas notícias recentes ilustram bem os males de que Portugal padece. A primeira relatava que só agora se vão tornar obrigatórios procedimentos de segurança tão absolutamente básicos como confirmar o nome do doente numa operação cirúrgica. Já há tempos se tinha concluído que causa frequente de infecções era a falta de hábito de lavar as mãos entre os profissionais (ou nem tanto...) de saúde. Acrescento eu o inacreditável desleixo com que médicos e enfermeiros circulam nos hospitais, entra e sai desde o bar do edifício às zonas de acesso restrito, com o mesmo calçado e bata com que tratam os doentes. Quem assim age não é ignorante. Pelo contrário, é altamente qualificado, com preparação científica mais que suficiente para compreender os riscos que cria por simples preguiça. Preguiça mental. A visão de todos à sua volta a cometerem os mesmos erros deixa-o alienado.
A segunda notícia dava conta da conquista da Cisco (o gigante mundial das redes de computadores) para um mirabolante projecto localizado em Paredes. Garantem os promotores, com a conivência da autarquia e do Governo, que vai nascer ali uma nova cidade altamente tecnológica, “verde” como se impõe, num investimento que atingirá dez mil milhões de euros. 10.000.000.000! Quantas empresas vão lá estar em 2015? Doze mil, dizem eles. Até agora nem um cêntimo dessa fortuna foi desembolsado por nenhum investidor e a Cisco, mais do que investir, propõe-se vender equipamentos e serviços. Muitos. Faz ela bem, é o seu negócio. A Câmara assegura que consegue financiamento para comprar os terrenos. Afinal Portugal é aquele pequeno país onde houve dinheiro para o Magalhães, porque não para isto também? Leiam-se os comentários que vão surgindo e constate-se como esta visão do paraíso intoxica até mentes habitualmente lúcidas.
(publicado no JN de 2010/07/01)
Duas notícias recentes ilustram bem os males de que Portugal padece. A primeira relatava que só agora se vão tornar obrigatórios procedimentos de segurança tão absolutamente básicos como confirmar o nome do doente numa operação cirúrgica. Já há tempos se tinha concluído que causa frequente de infecções era a falta de hábito de lavar as mãos entre os profissionais (ou nem tanto...) de saúde. Acrescento eu o inacreditável desleixo com que médicos e enfermeiros circulam nos hospitais, entra e sai desde o bar do edifício às zonas de acesso restrito, com o mesmo calçado e bata com que tratam os doentes. Quem assim age não é ignorante. Pelo contrário, é altamente qualificado, com preparação científica mais que suficiente para compreender os riscos que cria por simples preguiça. Preguiça mental. A visão de todos à sua volta a cometerem os mesmos erros deixa-o alienado.
A segunda notícia dava conta da conquista da Cisco (o gigante mundial das redes de computadores) para um mirabolante projecto localizado em Paredes. Garantem os promotores, com a conivência da autarquia e do Governo, que vai nascer ali uma nova cidade altamente tecnológica, “verde” como se impõe, num investimento que atingirá dez mil milhões de euros. 10.000.000.000! Quantas empresas vão lá estar em 2015? Doze mil, dizem eles. Até agora nem um cêntimo dessa fortuna foi desembolsado por nenhum investidor e a Cisco, mais do que investir, propõe-se vender equipamentos e serviços. Muitos. Faz ela bem, é o seu negócio. A Câmara assegura que consegue financiamento para comprar os terrenos. Afinal Portugal é aquele pequeno país onde houve dinheiro para o Magalhães, porque não para isto também? Leiam-se os comentários que vão surgindo e constate-se como esta visão do paraíso intoxica até mentes habitualmente lúcidas.
(publicado no JN de 2010/07/01)
2010/06/18
A culpa é da beldroega
Em vez de protestar contra o pagamento nas SCUT devíamos mudar de casa para passar a habitar perto do emprego
Portugal às vezes é de compreensão lenta. Acabou o dinheiro. Aquilo que até agora desperdiçávamos vai ter de ser aproveitado. O uso da inteligência é uma necessidade absoluta, já não apenas conveniência. O mal afecta principalmente algumas “forças de bloqueio”, das quais destaco dois tipos.
O primeiro é constituido pelos pais que dedicam ao futebol uma atenção inversamente proporcional aos hábitos de poupança e rigor que incutem nos filhos em idade escolar. Queixam-se de Sócrates (e com razão) sem consciência de que o imitam, deseducando. Ao segundo tipo pertencem os “investidores” que não investem, “só quando a crise passar”. Claro que o verdadeiro problema deles não é a crise, mas a própria incompetência revelada na incapacidade de perceber onde estão as oportunidades de negócio. Como consolação resta-lhes o bom senso de não arriscar o capital acumulado, pois iriam certamente desbaratá-lo nestes tempos que os transcendem.
Há dias, ao visitar uma horta no centro da cidade, mostraram-me a beldroega, uma planta que eu não sabia identificar. Fez-me recordar os acampamentos em que na adolescência participei com o grupo de jovens a que pertencia, onde aprendíamos a viver com pouco. Ao mudar de ambiente éramos levados a reflectir sobre os recursos de que dispúnhamos, o uso que lhes dávamos, e a nossa quota-parte de responsabilidade na gestão do mundo. E assim, por causa da beldroega, fiquei mais convencido de que em vez de protestar contra o pagamento nas SCUT devíamos mudar de casa para passar a habitar perto do emprego, e que em vez de procurar propostas de bons negócios devíamos investir o nosso tempo a criá-las, e que em vez de lutar pela regionalização contra o Governo podíamos tratar melhor da nossa cidade dando dimensão adequada e ferramentas eficazes às freguesias.
(publicado no JN de 2010/06/17)
Portugal às vezes é de compreensão lenta. Acabou o dinheiro. Aquilo que até agora desperdiçávamos vai ter de ser aproveitado. O uso da inteligência é uma necessidade absoluta, já não apenas conveniência. O mal afecta principalmente algumas “forças de bloqueio”, das quais destaco dois tipos.
O primeiro é constituido pelos pais que dedicam ao futebol uma atenção inversamente proporcional aos hábitos de poupança e rigor que incutem nos filhos em idade escolar. Queixam-se de Sócrates (e com razão) sem consciência de que o imitam, deseducando. Ao segundo tipo pertencem os “investidores” que não investem, “só quando a crise passar”. Claro que o verdadeiro problema deles não é a crise, mas a própria incompetência revelada na incapacidade de perceber onde estão as oportunidades de negócio. Como consolação resta-lhes o bom senso de não arriscar o capital acumulado, pois iriam certamente desbaratá-lo nestes tempos que os transcendem.
Há dias, ao visitar uma horta no centro da cidade, mostraram-me a beldroega, uma planta que eu não sabia identificar. Fez-me recordar os acampamentos em que na adolescência participei com o grupo de jovens a que pertencia, onde aprendíamos a viver com pouco. Ao mudar de ambiente éramos levados a reflectir sobre os recursos de que dispúnhamos, o uso que lhes dávamos, e a nossa quota-parte de responsabilidade na gestão do mundo. E assim, por causa da beldroega, fiquei mais convencido de que em vez de protestar contra o pagamento nas SCUT devíamos mudar de casa para passar a habitar perto do emprego, e que em vez de procurar propostas de bons negócios devíamos investir o nosso tempo a criá-las, e que em vez de lutar pela regionalização contra o Governo podíamos tratar melhor da nossa cidade dando dimensão adequada e ferramentas eficazes às freguesias.
(publicado no JN de 2010/06/17)
2010/06/04
Criativos não-praticantes
As “indústrias criativas” não existem. O que existe é criatividade nas indústrias, e nos serviços também.
A minha paciência para teoria sobre “indústrias criativas” já se esgotou. As “indústrias criativas” não existem. O que existe é criatividade nas indústrias, e nos serviços também. Há um ano escrevi sobre a ameaça dos “encarregados de educação” do empreendedorismo alheio que não arriscam eles próprios criar o seu negócio, sublinhando que criatividade passará pelas novas modas digitais mas também por necessidades como reabilitação urbana, apoio social, funcionamento da justiça, simplificação de regulamentos...
Não haverá criatividade que chegue para fazer baixar o estacionamento automóvel irregular? Nenhuma alma inventiva descobrirá maneira de aproveitar os espaços urbanos com capacidade agrícola? Com tantos desempregados ociosos, ninguém conseguirá organizar acções (ao menos de voluntariado) onde eles tenham interesse em ser úteis? A desocupação e degradação do edificado dos centros urbanos é um problema complexo demais para estas “indústrias”? Uma cidade não passa a ser atractiva pelo facto de haver animações avulsas do espaço público, umas vezes bem conseguidas, outras nem por isso. Nem se provoca impacto económico sensível no país com mais meia dúzia de micro-empresas ou associações temáticas sem nenhum potencial para atingirem grande dimensão.
A inovação está provavelmente muito mais no talento para pegar em ideias simples (se calhar já antigas e por isso pouco "fashion") que sejam eficazes. Ou seja, a capacidade criativa tem de estar embebida na economia “normal”, nas relações sociais, nas nossas rotinas, e não num mundo à parte onde mentes iluminadas lançam ideias para outros eventualmente colherem. Neste contexto, vale a pena medir os resultados da acção de entidades como a ADDICT. A criatividade chegou ao menos para estabelecer critérios de avaliação? Divulguem-se.
(publicado no JN de 2010/06/03)
A minha paciência para teoria sobre “indústrias criativas” já se esgotou. As “indústrias criativas” não existem. O que existe é criatividade nas indústrias, e nos serviços também. Há um ano escrevi sobre a ameaça dos “encarregados de educação” do empreendedorismo alheio que não arriscam eles próprios criar o seu negócio, sublinhando que criatividade passará pelas novas modas digitais mas também por necessidades como reabilitação urbana, apoio social, funcionamento da justiça, simplificação de regulamentos...
Não haverá criatividade que chegue para fazer baixar o estacionamento automóvel irregular? Nenhuma alma inventiva descobrirá maneira de aproveitar os espaços urbanos com capacidade agrícola? Com tantos desempregados ociosos, ninguém conseguirá organizar acções (ao menos de voluntariado) onde eles tenham interesse em ser úteis? A desocupação e degradação do edificado dos centros urbanos é um problema complexo demais para estas “indústrias”? Uma cidade não passa a ser atractiva pelo facto de haver animações avulsas do espaço público, umas vezes bem conseguidas, outras nem por isso. Nem se provoca impacto económico sensível no país com mais meia dúzia de micro-empresas ou associações temáticas sem nenhum potencial para atingirem grande dimensão.
A inovação está provavelmente muito mais no talento para pegar em ideias simples (se calhar já antigas e por isso pouco "fashion") que sejam eficazes. Ou seja, a capacidade criativa tem de estar embebida na economia “normal”, nas relações sociais, nas nossas rotinas, e não num mundo à parte onde mentes iluminadas lançam ideias para outros eventualmente colherem. Neste contexto, vale a pena medir os resultados da acção de entidades como a ADDICT. A criatividade chegou ao menos para estabelecer critérios de avaliação? Divulguem-se.
(publicado no JN de 2010/06/03)
2010/05/21
Sociedade instantânea
Uma instituição milenar como a Igreja Católica compreende bem que há tempo para além do nosso tempo
Tenho defendido que os principais problemas do país são um sistema de justiça anedótico, leis e regulamentos perfeitos para sabotar uma vida normal em sociedade, e também o peso mastodôntico do Estado. Receio agora ter de acrescentar mais um: o facto de não se dar tempo ao tempo. “Devagar, que temos pressa.”
Vivemos num mundo que aspira a ser instantâneo, movido por acções de efeito imediato. Desesperados com as contrariedades, perdemos a persistência junto com a paciência. Concentramo-nos no presente, no território próximo, nas pessoas conhecidas. Daniel Innerarity esta semana em Serralves, numa convergência (aparentemente sem que ele se tivesse apercebido disso) com a visão do mundo de Bento XVI, referia o “triunfo das insignificâncias”, a “tirania do presente”, a “expropriação do futuro” que fazemos às gerações vindouras na ausência de quem as defenda. Sugeria ele então uma “colectivização intergeracional do tempo”, estendendo a atenção do nosso próximo (no sentido bíblico) também ao “nosso longínquo”. Uma instituição milenar como a Igreja Católica compreende bem que há tempo para além do nosso tempo.
Não podia este tema vir mais a propósito da situação de Portugal. Perante um Executivo moribundo, devemos ter a prudência de recusar um amanhã que hipoteque o depois de amanhã. Há um tempo para ajudar o Governo e um tempo para substituir o Governo. Cada coisa a seu tempo. Os efeitos de curto prazo nos mercados internacionais, perante um sufoco de tesouraria do país, recomendam até um aumento de impostos. Por uma vez, acredito nos especialistas. Mas não me vou esquecer de lhes lembrar que esse aumento é temporário porque temos pressa do futuro que ainda não houve tempo de construir. Deixemos a tempestade financeira acalmar. Vai ser aí que o Governo termina o seu tempo.
(publicado no JN de 2010/05/20)
Tenho defendido que os principais problemas do país são um sistema de justiça anedótico, leis e regulamentos perfeitos para sabotar uma vida normal em sociedade, e também o peso mastodôntico do Estado. Receio agora ter de acrescentar mais um: o facto de não se dar tempo ao tempo. “Devagar, que temos pressa.”
Vivemos num mundo que aspira a ser instantâneo, movido por acções de efeito imediato. Desesperados com as contrariedades, perdemos a persistência junto com a paciência. Concentramo-nos no presente, no território próximo, nas pessoas conhecidas. Daniel Innerarity esta semana em Serralves, numa convergência (aparentemente sem que ele se tivesse apercebido disso) com a visão do mundo de Bento XVI, referia o “triunfo das insignificâncias”, a “tirania do presente”, a “expropriação do futuro” que fazemos às gerações vindouras na ausência de quem as defenda. Sugeria ele então uma “colectivização intergeracional do tempo”, estendendo a atenção do nosso próximo (no sentido bíblico) também ao “nosso longínquo”. Uma instituição milenar como a Igreja Católica compreende bem que há tempo para além do nosso tempo.
Não podia este tema vir mais a propósito da situação de Portugal. Perante um Executivo moribundo, devemos ter a prudência de recusar um amanhã que hipoteque o depois de amanhã. Há um tempo para ajudar o Governo e um tempo para substituir o Governo. Cada coisa a seu tempo. Os efeitos de curto prazo nos mercados internacionais, perante um sufoco de tesouraria do país, recomendam até um aumento de impostos. Por uma vez, acredito nos especialistas. Mas não me vou esquecer de lhes lembrar que esse aumento é temporário porque temos pressa do futuro que ainda não houve tempo de construir. Deixemos a tempestade financeira acalmar. Vai ser aí que o Governo termina o seu tempo.
(publicado no JN de 2010/05/20)
2010/05/07
O Mistério da Couve Desperdiçada
Mesmo sem esperar por alterações às regras dos apoios sociais, as juntas de freguesia saberiam cativar com prémios não financeiros quem pegar na sachola
Faltam programas de utilização sistemática dos solos disponíveis para fins agrícolas nos centros urbanos. Algo que faça sentido dos pontos de vista económico, ambiental e, importantíssimo, da integração social. Este último aspecto é até o que mais impacto poderia ter. Que melhor opção existe para dar trabalho a quem não tem outras alternativas devido à idade, a falta de formação, ou a escassez de empregos?
Basta consultar imagens de satélite para se constatar a impressionante mancha verde no interior de inúmeros quarteirões actualmente pouco cuidados. E, no caso do Porto, tanta água que sabemos correr em ribeiras no subsolo! Mas, ao calcorrear essas ruas das cidades, encontra-se gente resignada a uma vida dependente do Rendimento Social de Inserção que, mole, nem trata da terra que tem atrás de casa nem faz manutenção aos edifícios – não se decide a ser útil.
É tarefa espinhosa convencer alguém a trabalhar se não tiver incentivos para tal. Mas, mesmo sem esperar por alterações às regras dos apoios sociais, as juntas de freguesia saberiam cativar com prémios não financeiros quem pegar na sachola (além da óbvia retribuição em produtos agrícolas). Apesar de eventuais boas intenções da Administração Pública, é aflitivo ver como se desperdiçam oportunidades simples que estão ao nosso alcance. Envolvam-se autarquias, IPSS, mercados tradicionais e cadeias de abastecimento dos supermercados de proximidade. Reunam-se competências dispersas para conseguir lançar explorações de agricultura urbana em pequena escala em conjunto com os proprietários dos muitos terrenos escondidos (ou nem por isso) no interior das cidades. Tentemos resolver problema a problema, sem adiarmos até que apareça uma qualquer duvidosa Grande Estratégia. Esta agricultura também é uma “indústria criativa”.
(publicado no JN de 2010/05/06)
Faltam programas de utilização sistemática dos solos disponíveis para fins agrícolas nos centros urbanos. Algo que faça sentido dos pontos de vista económico, ambiental e, importantíssimo, da integração social. Este último aspecto é até o que mais impacto poderia ter. Que melhor opção existe para dar trabalho a quem não tem outras alternativas devido à idade, a falta de formação, ou a escassez de empregos?
Basta consultar imagens de satélite para se constatar a impressionante mancha verde no interior de inúmeros quarteirões actualmente pouco cuidados. E, no caso do Porto, tanta água que sabemos correr em ribeiras no subsolo! Mas, ao calcorrear essas ruas das cidades, encontra-se gente resignada a uma vida dependente do Rendimento Social de Inserção que, mole, nem trata da terra que tem atrás de casa nem faz manutenção aos edifícios – não se decide a ser útil.
É tarefa espinhosa convencer alguém a trabalhar se não tiver incentivos para tal. Mas, mesmo sem esperar por alterações às regras dos apoios sociais, as juntas de freguesia saberiam cativar com prémios não financeiros quem pegar na sachola (além da óbvia retribuição em produtos agrícolas). Apesar de eventuais boas intenções da Administração Pública, é aflitivo ver como se desperdiçam oportunidades simples que estão ao nosso alcance. Envolvam-se autarquias, IPSS, mercados tradicionais e cadeias de abastecimento dos supermercados de proximidade. Reunam-se competências dispersas para conseguir lançar explorações de agricultura urbana em pequena escala em conjunto com os proprietários dos muitos terrenos escondidos (ou nem por isso) no interior das cidades. Tentemos resolver problema a problema, sem adiarmos até que apareça uma qualquer duvidosa Grande Estratégia. Esta agricultura também é uma “indústria criativa”.
(publicado no JN de 2010/05/06)
2010/04/23
A barreira nocturna dos Aliados
Uma solução, contudo, já foi proposta publicamente pelo Arq.º Pulido Valente: concentrar os dois sentidos de trânsito na faixa de rodagem a poente
No passado fim de semana participei numa visita à Baixa e ao Centro Histórico do Porto entre as onze da noite e as três da madrugada (publiquei breve registo em www.porto.taf.net). As pessoas ligadas à Faculdade de Letras que simpaticamente a organizaram, e que têm estudado com pormenor o que se passa na cidade, confirmaram os receios que sinto já há longo tempo: a Avenida dos Aliados divide vincadamente a “noite” do lado Oriental e a “noite” do lado Ocidental, prejudicando a vivência que seria possível sem esta barreira. Mesmo durante o dia, as recentes alterações impostas por Siza e Souto Moura induziram um aumento do tráfego automóvel, o que só por si desqualifica a zona.
Uma solução, contudo, já foi proposta publicamente pelo Arq.º Pulido Valente: concentrar os dois sentidos de trânsito na faixa de rodagem a poente e deixar a via a nascente, numa configuração semelhante à da Rua do Bonjardim em frente ao Rivoli, reservada para peões e transportes públicos. Criar-se-á assim um espaço contínuo desde a Praça D. João I, tornando viável o uso da placa central dos Aliados para esplanadas e promovendo a sua ocupação no dia-a-dia, que não apenas no S. João, nas vitórias do FCPorto ou nas vindas do Papa.
Não se compreende também o total desleixo nocturno nos locais mais frequentados. Praça Filipa de Lencastre, Rua Galeria de Paris, Travessa de Cedofeita e locais adjacentes são depósitos de copos de plástico ou urinóis ao ar livre. O estacionamento é caótico. A câmara e as juntas de freguesia que se entendam para actuar em coordenação: trata-se até de poupar dinheiro, pois a vigilância 24h por dia evita custos bem mais altos de limpeza e reparação posterior dos estragos. Todos ficarão beneficiados. Assim como agora está, isto não é usar o espaço público na movida, é confiscá-lo.
(publicado no JN de 2010/04/22)
No passado fim de semana participei numa visita à Baixa e ao Centro Histórico do Porto entre as onze da noite e as três da madrugada (publiquei breve registo em www.porto.taf.net). As pessoas ligadas à Faculdade de Letras que simpaticamente a organizaram, e que têm estudado com pormenor o que se passa na cidade, confirmaram os receios que sinto já há longo tempo: a Avenida dos Aliados divide vincadamente a “noite” do lado Oriental e a “noite” do lado Ocidental, prejudicando a vivência que seria possível sem esta barreira. Mesmo durante o dia, as recentes alterações impostas por Siza e Souto Moura induziram um aumento do tráfego automóvel, o que só por si desqualifica a zona.
Uma solução, contudo, já foi proposta publicamente pelo Arq.º Pulido Valente: concentrar os dois sentidos de trânsito na faixa de rodagem a poente e deixar a via a nascente, numa configuração semelhante à da Rua do Bonjardim em frente ao Rivoli, reservada para peões e transportes públicos. Criar-se-á assim um espaço contínuo desde a Praça D. João I, tornando viável o uso da placa central dos Aliados para esplanadas e promovendo a sua ocupação no dia-a-dia, que não apenas no S. João, nas vitórias do FCPorto ou nas vindas do Papa.
Não se compreende também o total desleixo nocturno nos locais mais frequentados. Praça Filipa de Lencastre, Rua Galeria de Paris, Travessa de Cedofeita e locais adjacentes são depósitos de copos de plástico ou urinóis ao ar livre. O estacionamento é caótico. A câmara e as juntas de freguesia que se entendam para actuar em coordenação: trata-se até de poupar dinheiro, pois a vigilância 24h por dia evita custos bem mais altos de limpeza e reparação posterior dos estragos. Todos ficarão beneficiados. Assim como agora está, isto não é usar o espaço público na movida, é confiscá-lo.
(publicado no JN de 2010/04/22)
2010/04/09
Nuclear: sempre os mesmos erros
Em vez de apostar na oferta de energia, é preferível investir um montante equivalente na redução da procura, com resultados decerto até mais compensadores
A hipótese de construção de uma central nuclear em Portugal só se explica porque quem a defende, estando de boa fé, se entusiasmou com o assunto sem reflectir bem nele.
1) Por menor que seja o risco, um acidente numa central nuclear pode ter consequências absolutamente catastróficas. Temos centrais aqui à nossa beira em Espanha, mas "perdidos por cem, perdidos por mil" não é argumento. Além de falha técnica ou humana, há sempre vulnerabilidade a acções terroristas - que belo alvo!
2) A energia produzida por uma central nuclear é barata. É. Se não considerarmos os custos de tratamento e armazenagem (por uma eternidade, literalmente) dos resíduos radioactivos para os quais, aliás, não há nenhuma boa solução. Se não considerarmos os custos de vigilância e prevenção de acidentes/atentados. Etc, etc.
3) Vamos confiar no Estado para gerir um processo destes? Vamos entregar os estudos ao mesmo tipo de especialistas que defendeu a Ota ou o TGV? Não venham dizer que se consegue fazer tudo com investimento privado, porque é inevitável grande envolvimento público, directo ou indirecto.
4) Em vez de apostar na oferta de energia, é preferível investir um montante equivalente na redução da procura, com resultados decerto até mais compensadores.
5) Uma central nuclear em Portugal, e em particular no Douro onde já se chegou a ameaçar, arruina completamente a imagem de ambiente de qualidade que pretendemos "vender". Já se calculou o custo disso?
6) Enquanto houver alternativas, mesmo que "mais caras" numa análise simplista, a prudência impõe soluções diferentes. Talvez se consiga adiar por algumas dezenas de anos o recurso à fissão nuclear produzida localmente (nem que seja recorrendo à importação de energia!), até que esteja disponível a tecnologia de fusão nuclear, essa sim limpa e segura.
(publicado no JN de 2010/04/08)
A hipótese de construção de uma central nuclear em Portugal só se explica porque quem a defende, estando de boa fé, se entusiasmou com o assunto sem reflectir bem nele.
1) Por menor que seja o risco, um acidente numa central nuclear pode ter consequências absolutamente catastróficas. Temos centrais aqui à nossa beira em Espanha, mas "perdidos por cem, perdidos por mil" não é argumento. Além de falha técnica ou humana, há sempre vulnerabilidade a acções terroristas - que belo alvo!
2) A energia produzida por uma central nuclear é barata. É. Se não considerarmos os custos de tratamento e armazenagem (por uma eternidade, literalmente) dos resíduos radioactivos para os quais, aliás, não há nenhuma boa solução. Se não considerarmos os custos de vigilância e prevenção de acidentes/atentados. Etc, etc.
3) Vamos confiar no Estado para gerir um processo destes? Vamos entregar os estudos ao mesmo tipo de especialistas que defendeu a Ota ou o TGV? Não venham dizer que se consegue fazer tudo com investimento privado, porque é inevitável grande envolvimento público, directo ou indirecto.
4) Em vez de apostar na oferta de energia, é preferível investir um montante equivalente na redução da procura, com resultados decerto até mais compensadores.
5) Uma central nuclear em Portugal, e em particular no Douro onde já se chegou a ameaçar, arruina completamente a imagem de ambiente de qualidade que pretendemos "vender". Já se calculou o custo disso?
6) Enquanto houver alternativas, mesmo que "mais caras" numa análise simplista, a prudência impõe soluções diferentes. Talvez se consiga adiar por algumas dezenas de anos o recurso à fissão nuclear produzida localmente (nem que seja recorrendo à importação de energia!), até que esteja disponível a tecnologia de fusão nuclear, essa sim limpa e segura.
(publicado no JN de 2010/04/08)
2010/03/26
O PSD e o país real
Portugal não é só elite, excelência, qualidade. Portugal é isso e tudo o resto. O cidadão normal é capaz do melhor e do pior.
Uma das razões que levaram a uma fase infeliz do PSD foi a incapacidade da sua liderança compreender que o país é feito de gente "normal", com as qualidades e defeitos "normais". Ao contrário do que aconteceu historicamente nas autarquias, a nível nacional criou-se um fosso entre as elites e o povo. Uma pequena minoria, com algumas qualidades (intelectuais, culturais, académicas) de facto acima da média, julga ter legitimidade acrescida pelo facto de ser elite. Essa minoria tenta liderar sem possuir experiência prática da vida do cidadão comum, sem partilhar com ele essas qualidades, e sem recolher dele o “feedback” que é também conhecimento valioso; ela não tem paciência para dedicar às questões mais terra-a-terra que a nível local alguns cidadãos interventivos acabam por tratar à sua maneira, com esforço e dedicação, e muitas vezes bem.
Acredito que Passos Coelho tenha percebido isso e que tente agora, sem falsas modéstias mas com consciência de que sozinho ninguém desenvolve o país, congregar esforços num projecto comum. Portugal não é só elite, excelência, qualidade. Portugal é isso e tudo o resto. O cidadão normal é capaz do melhor e do pior: num ambiente saudável, construtivo, colaborativo, ele habitualmente contribui de forma positiva; ao contrário, quando imerso na agressividade, na desonestidade, na inveja, ele ajuda a piorar a situação. Um bom líder tem por isso de saber criar o ambiente propício a que cada pessoa possa dar o melhor de si, trabalhando com as pessoas reais, com os portugueses que somos.
O próprio líder, contudo, não é isento de limitações e imperfeições. Daí que uma postura de sistemática abertura à participação da sociedade civil seja fundamental para garantir transparência, qualidade e fiabilidade. Nesse aspecto, Passos Coelho está no rumo certo.
(publicado no JN de 2010/03/25)
Uma das razões que levaram a uma fase infeliz do PSD foi a incapacidade da sua liderança compreender que o país é feito de gente "normal", com as qualidades e defeitos "normais". Ao contrário do que aconteceu historicamente nas autarquias, a nível nacional criou-se um fosso entre as elites e o povo. Uma pequena minoria, com algumas qualidades (intelectuais, culturais, académicas) de facto acima da média, julga ter legitimidade acrescida pelo facto de ser elite. Essa minoria tenta liderar sem possuir experiência prática da vida do cidadão comum, sem partilhar com ele essas qualidades, e sem recolher dele o “feedback” que é também conhecimento valioso; ela não tem paciência para dedicar às questões mais terra-a-terra que a nível local alguns cidadãos interventivos acabam por tratar à sua maneira, com esforço e dedicação, e muitas vezes bem.
Acredito que Passos Coelho tenha percebido isso e que tente agora, sem falsas modéstias mas com consciência de que sozinho ninguém desenvolve o país, congregar esforços num projecto comum. Portugal não é só elite, excelência, qualidade. Portugal é isso e tudo o resto. O cidadão normal é capaz do melhor e do pior: num ambiente saudável, construtivo, colaborativo, ele habitualmente contribui de forma positiva; ao contrário, quando imerso na agressividade, na desonestidade, na inveja, ele ajuda a piorar a situação. Um bom líder tem por isso de saber criar o ambiente propício a que cada pessoa possa dar o melhor de si, trabalhando com as pessoas reais, com os portugueses que somos.
O próprio líder, contudo, não é isento de limitações e imperfeições. Daí que uma postura de sistemática abertura à participação da sociedade civil seja fundamental para garantir transparência, qualidade e fiabilidade. Nesse aspecto, Passos Coelho está no rumo certo.
(publicado no JN de 2010/03/25)
2010/03/12
Somos os melhores em tudo
O partido com que o cidadão se sente identificado nas eleições legislativas e europeias não é necessariamente o mesmo que defende os seus interesses locais
Em Democracia a participação política dos cidadãos não é exercida só através dos partidos, mas eles são a ferramenta principal. As pessoas com interesses compatíveis entre si agrupam-se em estruturas que os defendem, gerando massa crítica de intervenção. Apresentando-se a eleições ganham a legitimidade do voto e, em caso de maioria, conquistam o direito de implantar as propostas sufragadas. Quem não pertence a um partido opta por reservar para si apenas a escolha final nas eleições; a construção das várias alternativas terá sido delegada ao interior dos partidos. Neste contexto, quem pretende ter uma intervenção política mais activa deve geralmente inscrever-se como militante. Adquire assim o direito de votar para a escolha dos dirigentes, do programa e dos candidatos a deputados ou autarcas.
Acontece que o partido com que o cidadão se sente identificado nas eleições legislativas e europeias não é necessariamente o mesmo que defende os seus interesses locais. Não é razoável exigir que pessoas que comungam de uma mesma linha de pensamento relativamente à política nacional ou europeia (Governo, Assembleia da República, Parlamento Europeu) alcancem consenso quanto à gestão da sua freguesia ou município. Os assuntos tratados nas autarquias locais são em grande parte completamente independentes das opções de relevância mais alargada.
Por isso os partidos, com projecção nacional, não devem impor fidelidade de voto também local. Se são assuntos distintos, os cidadãos precisam de ter sempre a liberdade de escolher quem melhor os representa em cada nível de poder. É muito positivo que os partidos se envolvam intensamente na política local, mas não tenham a presunção de se julgar obrigatoriamente a melhor opção para os militantes que os escolheram por causa da nacional.
(publicado no JN de 2010/03/11)
Em Democracia a participação política dos cidadãos não é exercida só através dos partidos, mas eles são a ferramenta principal. As pessoas com interesses compatíveis entre si agrupam-se em estruturas que os defendem, gerando massa crítica de intervenção. Apresentando-se a eleições ganham a legitimidade do voto e, em caso de maioria, conquistam o direito de implantar as propostas sufragadas. Quem não pertence a um partido opta por reservar para si apenas a escolha final nas eleições; a construção das várias alternativas terá sido delegada ao interior dos partidos. Neste contexto, quem pretende ter uma intervenção política mais activa deve geralmente inscrever-se como militante. Adquire assim o direito de votar para a escolha dos dirigentes, do programa e dos candidatos a deputados ou autarcas.
Acontece que o partido com que o cidadão se sente identificado nas eleições legislativas e europeias não é necessariamente o mesmo que defende os seus interesses locais. Não é razoável exigir que pessoas que comungam de uma mesma linha de pensamento relativamente à política nacional ou europeia (Governo, Assembleia da República, Parlamento Europeu) alcancem consenso quanto à gestão da sua freguesia ou município. Os assuntos tratados nas autarquias locais são em grande parte completamente independentes das opções de relevância mais alargada.
Por isso os partidos, com projecção nacional, não devem impor fidelidade de voto também local. Se são assuntos distintos, os cidadãos precisam de ter sempre a liberdade de escolher quem melhor os representa em cada nível de poder. É muito positivo que os partidos se envolvam intensamente na política local, mas não tenham a presunção de se julgar obrigatoriamente a melhor opção para os militantes que os escolheram por causa da nacional.
(publicado no JN de 2010/03/11)
2010/02/26
Prefiro um Governo de gestão
Se depois das eleições vier um governo competente, não será esse curto período transitório causador de maior mal do que aquele ao qual já não nos escapamos
Uma das últimas teorias para justificar a manutenção, ainda que penosa, do governo de José Sócrates é a que nos tenta assustar com perigos de um governo de gestão. Ai que as eleições não se podem realizar imediatamente, ai que há medidas urgentíssimas que teriam de ser adiadas, ai o que seria da nossa fama nos mercados financeiros internacionais!
Mas afinal onde está o mal? Se agora continuam a ser tomadas medidas erradas, se o orçamento está longe de ser bom, se não se inverteu o descalabro, se insistem nas manobras contabilísticas para esconder dívidas do Estado, o que temos a perder? Pode acontecer que o custo de financiamento externo aumente a pique durante poucos meses mas, se depois das eleições vier um governo competente, não será esse curto período transitório causador de maior mal do que aquele ao qual já não nos escapamos. Pelo contrário, mais vale uma cura dolorosa mas rápida do que um contínuo resvalar para a desgraça.
Acredito que seria possível obter apoio alargado na Assembleia da República, enquanto se esperam eleições, para um governo com funções equivalentes às de um de gestão com um significativo acrescento: a melhoria da Justiça (incluindo simplificação radical de leis e regulamentos). Estando obrigado a concentrar-se neste assunto que é a primeira prioridade para Portugal, e relativamente ao qual o consenso será viável, aposto que um Executivo de programa assim minimalista proporcionará até excelentes resultados.
Nota final: a entrevista de Sousa Tavares a Sócrates fez-me lembrar a de Judite de Sousa a Rui Rio – se não é confrontado (e não foi) com argumentos bem sistematizados e totalmente inquestionáveis, um político profissional como estes acaba por ser “branqueado” aos olhos dos seus apoiantes por um entrevistador que facilitou no trabalho de casa.
(publicado no JN de 2010/02/25)
Uma das últimas teorias para justificar a manutenção, ainda que penosa, do governo de José Sócrates é a que nos tenta assustar com perigos de um governo de gestão. Ai que as eleições não se podem realizar imediatamente, ai que há medidas urgentíssimas que teriam de ser adiadas, ai o que seria da nossa fama nos mercados financeiros internacionais!
Mas afinal onde está o mal? Se agora continuam a ser tomadas medidas erradas, se o orçamento está longe de ser bom, se não se inverteu o descalabro, se insistem nas manobras contabilísticas para esconder dívidas do Estado, o que temos a perder? Pode acontecer que o custo de financiamento externo aumente a pique durante poucos meses mas, se depois das eleições vier um governo competente, não será esse curto período transitório causador de maior mal do que aquele ao qual já não nos escapamos. Pelo contrário, mais vale uma cura dolorosa mas rápida do que um contínuo resvalar para a desgraça.
Acredito que seria possível obter apoio alargado na Assembleia da República, enquanto se esperam eleições, para um governo com funções equivalentes às de um de gestão com um significativo acrescento: a melhoria da Justiça (incluindo simplificação radical de leis e regulamentos). Estando obrigado a concentrar-se neste assunto que é a primeira prioridade para Portugal, e relativamente ao qual o consenso será viável, aposto que um Executivo de programa assim minimalista proporcionará até excelentes resultados.
Nota final: a entrevista de Sousa Tavares a Sócrates fez-me lembrar a de Judite de Sousa a Rui Rio – se não é confrontado (e não foi) com argumentos bem sistematizados e totalmente inquestionáveis, um político profissional como estes acaba por ser “branqueado” aos olhos dos seus apoiantes por um entrevistador que facilitou no trabalho de casa.
(publicado no JN de 2010/02/25)
2010/02/12
Alforrecas
Não há estabilidade que justifique a manutenção de um caminho errado com gente indigna do cargo que ocupa - estabilidade em direcção ao abismo?
Generalizemos, cometendo com isso algumas injustiças: o cidadão comum está mole. Exige das figuras públicas padrões de comportamento a que ele próprio não se sujeita quando menos exposto a olhares alheios. A vivência num ambiente de ética degradada diminui o seu discernimento, a sua capacidade de indignação. As pequenas malandrices enquanto cidadão comum são precisamente a escola que prepara as acções em grande escala dignas de escroques que as circunstâncias da vida tornaram possíveis a alguns.
O que fazer quando as instituições parecem esboroar-se? Actuar com eficácia talvez cruel (pois a avaliação que se faz não é, nem deve ser, do âmbito rigoroso da Justiça), escolhendo rapidamente novos protagonistas. Não há estabilidade que justifique a manutenção de um caminho errado com gente indigna do cargo que ocupa - estabilidade em direcção ao abismo? O argumento de que sem uma alternativa na manga não se deve arriscar uma mudança é um resto do inevitável lastro cultural salazarista, que impele os representantes do povo a agir como se fossem seus “encarregados de educação”. A alternativa só se materializa em face da oportunidade, na medida da necessidade concreta. Uma solução aparecerá quando tiver mesmo de aparecer. Não se adie mais.
A “política de verdade” proposta, mas não praticada, pela actual direcção do PSD é um requisito essencial para qualquer governo nestas circunstâncias. Convém portanto haver memória clara do que nos trouxe a este ponto e das equipas responsáveis por isso, em especial executivo PS e oposição PSD. Quem pertenceu a essas equipas poderá certamente desempenhar papel útil no futuro, mas não haja ilusões de que essas mesmas pessoas possuem capacidade para liderar o esforço de inverter a desgraça em que estamos a cair. É altura de outra gente no PS e no PSD.
(publicado no JN de 2010/02/11)
Generalizemos, cometendo com isso algumas injustiças: o cidadão comum está mole. Exige das figuras públicas padrões de comportamento a que ele próprio não se sujeita quando menos exposto a olhares alheios. A vivência num ambiente de ética degradada diminui o seu discernimento, a sua capacidade de indignação. As pequenas malandrices enquanto cidadão comum são precisamente a escola que prepara as acções em grande escala dignas de escroques que as circunstâncias da vida tornaram possíveis a alguns.
O que fazer quando as instituições parecem esboroar-se? Actuar com eficácia talvez cruel (pois a avaliação que se faz não é, nem deve ser, do âmbito rigoroso da Justiça), escolhendo rapidamente novos protagonistas. Não há estabilidade que justifique a manutenção de um caminho errado com gente indigna do cargo que ocupa - estabilidade em direcção ao abismo? O argumento de que sem uma alternativa na manga não se deve arriscar uma mudança é um resto do inevitável lastro cultural salazarista, que impele os representantes do povo a agir como se fossem seus “encarregados de educação”. A alternativa só se materializa em face da oportunidade, na medida da necessidade concreta. Uma solução aparecerá quando tiver mesmo de aparecer. Não se adie mais.
A “política de verdade” proposta, mas não praticada, pela actual direcção do PSD é um requisito essencial para qualquer governo nestas circunstâncias. Convém portanto haver memória clara do que nos trouxe a este ponto e das equipas responsáveis por isso, em especial executivo PS e oposição PSD. Quem pertenceu a essas equipas poderá certamente desempenhar papel útil no futuro, mas não haja ilusões de que essas mesmas pessoas possuem capacidade para liderar o esforço de inverter a desgraça em que estamos a cair. É altura de outra gente no PS e no PSD.
(publicado no JN de 2010/02/11)
2010/01/29
O próximo Primeiro-Ministro
Quero que aproveite as competências dispersas pela sociedade civil para complementar ou corrigir o trabalho da sua própria equipa
As sociedades não mudam à velocidade dos indivíduos, têm a inércia de um petroleiro. Por isso os partidos tradicionais vão ser uma ferramenta indispensável para a reabilitação do país, sendo o PSD a base de uma alternativa ao actual desgoverno. O que é que eu quero de um novo líder do PSD e futuro primeiro-ministro?
Quero eleger alguém que me dê voz, que me represente de forma estável; não preciso de quem me explique depois o que é bom para mim. Quero que cative novos militantes e eleitores, que crie um ambiente propício à colaboração entre eles e os militantes mais antigos para produção de Política.
Quero que perceba que é muito limitada a capacidade do Governo, só por si, mudar o país; que o seu papel é o de potenciar a acção da iniciativa privada. Quero que aproveite as vastas competências dispersas pela sociedade civil, sabendo ouvi-la, para complementar ou corrigir o trabalho da sua própria equipa. Quero que diminua o âmbito da intervenção do Estado e os impostos que me suga, focando-o nas suas funções de regulador, de promotor da coesão social, de garante do cumprimento das regras da vida em sociedade. Preciso portanto de uma Justiça a funcionar com base em leis e regulamentos simples que não tratem o cidadão como irresponsável ou bandido em potencial.
Quero que se apresente ao país com uma proposta virada para o futuro, que suscite e reforce a ambição dos portugueses, que ajude a transformar as capacidades em progresso. Não me interessa um programa milagroso de medidas avulsas destinado a ser aplicado por um líder iluminado; prefiro um conjunto de opções estruturais enquadradas por sólidos princípios orientadores que se vão transformando em soluções concretas de um Governo que faça pouco, mas faça bem. Pensando bem, a escolha é simples. É de facto preciso mudar.
(publicado no JN de 2010/01/28)
As sociedades não mudam à velocidade dos indivíduos, têm a inércia de um petroleiro. Por isso os partidos tradicionais vão ser uma ferramenta indispensável para a reabilitação do país, sendo o PSD a base de uma alternativa ao actual desgoverno. O que é que eu quero de um novo líder do PSD e futuro primeiro-ministro?
Quero eleger alguém que me dê voz, que me represente de forma estável; não preciso de quem me explique depois o que é bom para mim. Quero que cative novos militantes e eleitores, que crie um ambiente propício à colaboração entre eles e os militantes mais antigos para produção de Política.
Quero que perceba que é muito limitada a capacidade do Governo, só por si, mudar o país; que o seu papel é o de potenciar a acção da iniciativa privada. Quero que aproveite as vastas competências dispersas pela sociedade civil, sabendo ouvi-la, para complementar ou corrigir o trabalho da sua própria equipa. Quero que diminua o âmbito da intervenção do Estado e os impostos que me suga, focando-o nas suas funções de regulador, de promotor da coesão social, de garante do cumprimento das regras da vida em sociedade. Preciso portanto de uma Justiça a funcionar com base em leis e regulamentos simples que não tratem o cidadão como irresponsável ou bandido em potencial.
Quero que se apresente ao país com uma proposta virada para o futuro, que suscite e reforce a ambição dos portugueses, que ajude a transformar as capacidades em progresso. Não me interessa um programa milagroso de medidas avulsas destinado a ser aplicado por um líder iluminado; prefiro um conjunto de opções estruturais enquadradas por sólidos princípios orientadores que se vão transformando em soluções concretas de um Governo que faça pouco, mas faça bem. Pensando bem, a escolha é simples. É de facto preciso mudar.
(publicado no JN de 2010/01/28)
2010/01/15
X
A medida mais urgente para a Economia é afinal na Justiça. E para a Educação também é na Justiça. E para o Ambiente também é na Justiça.
Governo e Assembleia da República continuam sem perceber que não haverá futuro num país em que são sistematicamente desrespeitadas as regras de funcionamento da sociedade. Os cidadãos não são defendidos com um mínimo de eficácia a nível dos tribunais e da Administração Pública. Assim se destroem relações sociais, economia e esperança.
A solução está ao alcance mas não é aplicada – a Justiça, em sentido lato. Simplifiquem-se drasticamente leis e regulamentos supérfluos, dificilmente entendidos e cujo cumprimento generalizado é impossível de garantir. Passo a passo, é essencial uma limpeza completa, eliminando motivos de recurso aos tribunais ou evitando interacções penosas com serviços do Estado. Estabeleçam-se prioridades de actuação. O que é mais urgente para apoio ao desenvolvimento? Incentivos fiscais ao investimento estrangeiro ou processos judiciais resolvidos em tempo útil? O que é mais importante para a reabilitação dos centros urbanos? Renovação do edificado com capitais estatais, ou uma lei das rendas com mecanismos racionais em que senhorios e inquilinos se entendam sem intermediação dos serviços públicos? Por isso a medida mais urgente para a Economia é afinal na Justiça. E para a Educação também é na Justiça. E para o Ambiente também é na Justiça.
A minha gata X, que morreu faz hoje um ano, percebia este raciocínio melhor do que Sócrates: se desconfiava de perigo largava o que estava a fazer, juntava-se à irmã gémea e vinham as duas a correr defender-me. Sejamos realistas: só mudando pessoas e, principalmente, processos de governar é que ultrapassamos esta degradação do país. É por isso que a escolha de um novo primeiro-ministro, na prática, está já em curso. Não se procure um salvador, mas alguém que congregue competências para tratar apenas do que é realmente prioritário.
(publicado no JN de 2010/01/14)
Governo e Assembleia da República continuam sem perceber que não haverá futuro num país em que são sistematicamente desrespeitadas as regras de funcionamento da sociedade. Os cidadãos não são defendidos com um mínimo de eficácia a nível dos tribunais e da Administração Pública. Assim se destroem relações sociais, economia e esperança.
A solução está ao alcance mas não é aplicada – a Justiça, em sentido lato. Simplifiquem-se drasticamente leis e regulamentos supérfluos, dificilmente entendidos e cujo cumprimento generalizado é impossível de garantir. Passo a passo, é essencial uma limpeza completa, eliminando motivos de recurso aos tribunais ou evitando interacções penosas com serviços do Estado. Estabeleçam-se prioridades de actuação. O que é mais urgente para apoio ao desenvolvimento? Incentivos fiscais ao investimento estrangeiro ou processos judiciais resolvidos em tempo útil? O que é mais importante para a reabilitação dos centros urbanos? Renovação do edificado com capitais estatais, ou uma lei das rendas com mecanismos racionais em que senhorios e inquilinos se entendam sem intermediação dos serviços públicos? Por isso a medida mais urgente para a Economia é afinal na Justiça. E para a Educação também é na Justiça. E para o Ambiente também é na Justiça.
A minha gata X, que morreu faz hoje um ano, percebia este raciocínio melhor do que Sócrates: se desconfiava de perigo largava o que estava a fazer, juntava-se à irmã gémea e vinham as duas a correr defender-me. Sejamos realistas: só mudando pessoas e, principalmente, processos de governar é que ultrapassamos esta degradação do país. É por isso que a escolha de um novo primeiro-ministro, na prática, está já em curso. Não se procure um salvador, mas alguém que congregue competências para tratar apenas do que é realmente prioritário.
(publicado no JN de 2010/01/14)
2009/12/31
O quarto individual
Na maior parte dos casos o quarto individual vai adicionar à doença a solidão e uma assistência menos eficaz
Li na passada Terça-feira, aqui no JN, que no projectado Centro Hospitalar de Gaia/Espinho “predominará o quarto individual”. Para alguns doentes isso será preferível, especialmente se tiverem a sorte de possuir familiares com disponibilidade para proporcionar companhia pemanente. Mas na maior parte dos casos o quarto individual vai adicionar à doença a solidão e uma assistência menos eficaz.
Escrevo com algum conhecimento de causa: já estive hospitalizado por alguns dias várias vezes (felizmente nenhuma delas por razões graves) em hospitais públicos e privados; trabalhei durante ano e meio no Hospital de Gaia. Façam-se algumas contas. Que percentagem dos doentes terá, na prática, visitas ou companhia? Que porção do tempo estarão sozinhos no seu quarto privativo? Antevejo o anúncio governamental: “inovação e progresso - cada doente com a sua própria televisão”! Não me atrevo a imaginar quantos minutos estará um profissional de saúde no quarto, nem as conversas que o internado terá com as paredes, mas adivinho os impropérios na cabeça de cada pessoa arrumada num cubículo do moderno complexo hospitalar quando receber de mãos diligentes um fantástico Magalhães com ligação de banda larga para actualizar a sua página do Facebook.
Quem é que projecta estes espaços e toma estas decisões? Não lhes exigem que vivam num hospital antes de desenhar um novo? O Estado vai mais uma vez atirar com dinheiro para cima dos problemas, neste caso possivelmente cheio de boas intenções que não escondem a habitual incompetência. Não se despreze o conhecimento humano acumulado: o “hospital ideal” nunca foi o “hospital do quarto individual”. As enfermarias, quando bem organizadas e de dimensão adequada, são os ambientes que mais favorecem a recuperação. O sofrimento ultrapassa-se melhor quando se aprende a partilhá-lo e a confortar quem está pior do que nós, quando se aceita que ele é inevitável. Faço votos para que em 2010 se compreenda que, também na doença, estamos melhor juntos do que cada um no seu canto.
(publicado no JN de 2009/12/31)
Li na passada Terça-feira, aqui no JN, que no projectado Centro Hospitalar de Gaia/Espinho “predominará o quarto individual”. Para alguns doentes isso será preferível, especialmente se tiverem a sorte de possuir familiares com disponibilidade para proporcionar companhia pemanente. Mas na maior parte dos casos o quarto individual vai adicionar à doença a solidão e uma assistência menos eficaz.
Escrevo com algum conhecimento de causa: já estive hospitalizado por alguns dias várias vezes (felizmente nenhuma delas por razões graves) em hospitais públicos e privados; trabalhei durante ano e meio no Hospital de Gaia. Façam-se algumas contas. Que percentagem dos doentes terá, na prática, visitas ou companhia? Que porção do tempo estarão sozinhos no seu quarto privativo? Antevejo o anúncio governamental: “inovação e progresso - cada doente com a sua própria televisão”! Não me atrevo a imaginar quantos minutos estará um profissional de saúde no quarto, nem as conversas que o internado terá com as paredes, mas adivinho os impropérios na cabeça de cada pessoa arrumada num cubículo do moderno complexo hospitalar quando receber de mãos diligentes um fantástico Magalhães com ligação de banda larga para actualizar a sua página do Facebook.
Quem é que projecta estes espaços e toma estas decisões? Não lhes exigem que vivam num hospital antes de desenhar um novo? O Estado vai mais uma vez atirar com dinheiro para cima dos problemas, neste caso possivelmente cheio de boas intenções que não escondem a habitual incompetência. Não se despreze o conhecimento humano acumulado: o “hospital ideal” nunca foi o “hospital do quarto individual”. As enfermarias, quando bem organizadas e de dimensão adequada, são os ambientes que mais favorecem a recuperação. O sofrimento ultrapassa-se melhor quando se aprende a partilhá-lo e a confortar quem está pior do que nós, quando se aceita que ele é inevitável. Faço votos para que em 2010 se compreenda que, também na doença, estamos melhor juntos do que cada um no seu canto.
(publicado no JN de 2009/12/31)
2009/12/18
Empresários de aviário
A reabilitação urbana é para quem está disposto a apostar o seu dinheiro antes dos outros - não por altruísmo, mas por apurado sentido de negócio
A reabilitação urbana é uma das áreas onde mais se evidencia o divórcio entre os investidores e o mundo real em que é suposto actuarem. Constroem um modelo teórico e tentam que a realidade a ele se adapte.
Um dos mitos é: “um bom negócio encontra sempre investidores”. Se assim fosse o centro das cidades tinha hoje outra vida! Em grande parte das situações é impossível provar que determinada oportunidade é um bom negócio, pois ele é criado à medida que vai sendo implantado. Faz sentido, por exemplo, preparar um projecto de arquitectura e obter o respectivo licenciamento antes de adquirido o imóvel ao qual se destina? Quem está disposto a arriscar esperar vários meses pela conclusão do processo sem ter assegurada a compra, podendo entretanto ver a oportunidade fugir? E, sem um projecto garantido, com que base se faz um plano de negócios convencional? Pior: se ainda não há propriamente um mercado a funcionar, que confiança atribuir a esse plano?
Os negócios têm muito de conhecimento não quantificável mas válido. Quando se verifica ser possível fazer contas detalhadas, é viável o recurso a crédito bancário ou a parcerias numa perspectiva eminentemente financeira. Mas e os outros casos? O “investidor” português típico é apenas gestor de património alheio: funcionário que tem de prestar contas aos accionistas da empresa que o contrata. Não pode justificar-se com um "investi aqui o vosso dinheiro porque me cheirou a bom negócio" e por isso defende-se exigindo estudos ou pareceres completamente irrealistas. Acaba por não aplicar o capital na reabilitação urbana nem nunca encontrar "bons projectos".
Falta aparecerem os verdadeiros empresários. A reabilitação urbana é para quem conhece o meio, para quem consegue preparar uma oferta adequada à procura que sabe existir, para quem antevê o futuro de cada cidade e sabe contribuir para o concretizar, para quem gosta dela e está disposto a apostar o seu tempo e o seu dinheiro antes dos outros - não por altruísmo, mas por apurado sentido de negócio.
(publicado no JN de 2009/12/17)
A reabilitação urbana é uma das áreas onde mais se evidencia o divórcio entre os investidores e o mundo real em que é suposto actuarem. Constroem um modelo teórico e tentam que a realidade a ele se adapte.
Um dos mitos é: “um bom negócio encontra sempre investidores”. Se assim fosse o centro das cidades tinha hoje outra vida! Em grande parte das situações é impossível provar que determinada oportunidade é um bom negócio, pois ele é criado à medida que vai sendo implantado. Faz sentido, por exemplo, preparar um projecto de arquitectura e obter o respectivo licenciamento antes de adquirido o imóvel ao qual se destina? Quem está disposto a arriscar esperar vários meses pela conclusão do processo sem ter assegurada a compra, podendo entretanto ver a oportunidade fugir? E, sem um projecto garantido, com que base se faz um plano de negócios convencional? Pior: se ainda não há propriamente um mercado a funcionar, que confiança atribuir a esse plano?
Os negócios têm muito de conhecimento não quantificável mas válido. Quando se verifica ser possível fazer contas detalhadas, é viável o recurso a crédito bancário ou a parcerias numa perspectiva eminentemente financeira. Mas e os outros casos? O “investidor” português típico é apenas gestor de património alheio: funcionário que tem de prestar contas aos accionistas da empresa que o contrata. Não pode justificar-se com um "investi aqui o vosso dinheiro porque me cheirou a bom negócio" e por isso defende-se exigindo estudos ou pareceres completamente irrealistas. Acaba por não aplicar o capital na reabilitação urbana nem nunca encontrar "bons projectos".
Falta aparecerem os verdadeiros empresários. A reabilitação urbana é para quem conhece o meio, para quem consegue preparar uma oferta adequada à procura que sabe existir, para quem antevê o futuro de cada cidade e sabe contribuir para o concretizar, para quem gosta dela e está disposto a apostar o seu tempo e o seu dinheiro antes dos outros - não por altruísmo, mas por apurado sentido de negócio.
(publicado no JN de 2009/12/17)
2009/12/04
O Tratado de Lisboa, agora em filme
Ver Cinema é também falar sobre ele, ou usá-lo como pretexto para conversar sobre outros assuntos
O Porto tem uma riqueza ímpar a nível de Cinema, que desperdiça de modo escandaloso. A Casa das Artes há anos sem projecções, o Cineclube do Porto moribundo apesar do património com grande relevância histórica e cultural, o fantasma da Casa do Cinema que a autarquia quis à força oferecer a Manoel de Oliveira. Isto apesar do sucesso do Fantasporto, da vigorosa actividade a nível das universidades e dos clubes informais, de Serralves, da Casa da Animação, da RTP no Monte da Virgem, ...
A nova Ministra da Cultura divulgou há dias a intenção de reactivar a Casa das Artes, realizando as obras necessárias. Há em simultâneo alguma agitação em volta do Cineclube do Porto, estudando-se potenciais sinergias. Grande parte das dificuldades provém apenas de mal-entendidos, desconfianças e muita inércia. Que não se ruminem os momentos infelizes do passado mais recente, mas que se divulguem desde já ideias neste campo como contributo para tornar a cidade mais atractiva.
Só passar filmes não basta – para isso temos DVD e os LCD em casa, com ou sem pipocas. Ver Cinema é também falar sobre ele, ou usá-lo como pretexto para conversar sobre outros assuntos – na velha tradição das tertúlias adaptadas aos dias de hoje. Os exemplos que funcionam bem noutros locais merecem ser copiados. Um cineclube com futuro tem de viver no âmbito de parcerias que complementem a sua oferta. Sejam escolas, bares, galerias de arte, partidos políticos, autarquias, outros cineclubes, salas de cinema comercial. Há mercado ligando documentário e jornalismo, ou arquitectura e filmes sobre cidades, ou política e a vida na Europa transposta para o ecrã.
A propósito, aqui vai já uma sugestão para o tema de um ciclo: o Tratado de Lisboa. É que não faltam sequer argumentistas locais para novas produções: aproveite-se a comédia proposta há dias por Paulo Rangel, defendendo como positivas as “dificuldades de interpretação” do tratado pois assim supostamente cria-se “um espaço de criatividade” que “dá o palco à política”. Bom filme!
(publicado no JN de 2009/12/03)
O Porto tem uma riqueza ímpar a nível de Cinema, que desperdiça de modo escandaloso. A Casa das Artes há anos sem projecções, o Cineclube do Porto moribundo apesar do património com grande relevância histórica e cultural, o fantasma da Casa do Cinema que a autarquia quis à força oferecer a Manoel de Oliveira. Isto apesar do sucesso do Fantasporto, da vigorosa actividade a nível das universidades e dos clubes informais, de Serralves, da Casa da Animação, da RTP no Monte da Virgem, ...
A nova Ministra da Cultura divulgou há dias a intenção de reactivar a Casa das Artes, realizando as obras necessárias. Há em simultâneo alguma agitação em volta do Cineclube do Porto, estudando-se potenciais sinergias. Grande parte das dificuldades provém apenas de mal-entendidos, desconfianças e muita inércia. Que não se ruminem os momentos infelizes do passado mais recente, mas que se divulguem desde já ideias neste campo como contributo para tornar a cidade mais atractiva.
Só passar filmes não basta – para isso temos DVD e os LCD em casa, com ou sem pipocas. Ver Cinema é também falar sobre ele, ou usá-lo como pretexto para conversar sobre outros assuntos – na velha tradição das tertúlias adaptadas aos dias de hoje. Os exemplos que funcionam bem noutros locais merecem ser copiados. Um cineclube com futuro tem de viver no âmbito de parcerias que complementem a sua oferta. Sejam escolas, bares, galerias de arte, partidos políticos, autarquias, outros cineclubes, salas de cinema comercial. Há mercado ligando documentário e jornalismo, ou arquitectura e filmes sobre cidades, ou política e a vida na Europa transposta para o ecrã.
A propósito, aqui vai já uma sugestão para o tema de um ciclo: o Tratado de Lisboa. É que não faltam sequer argumentistas locais para novas produções: aproveite-se a comédia proposta há dias por Paulo Rangel, defendendo como positivas as “dificuldades de interpretação” do tratado pois assim supostamente cria-se “um espaço de criatividade” que “dá o palco à política”. Bom filme!
(publicado no JN de 2009/12/03)
2009/11/20
Autarquias gay
Construímos ilusões disfarçadas de ambições quando, por preguiça ou inconsciência, descuramos o detalhe das nossas grandes estratégias
Há no Norte, claramente, um problema interno de comunicação. Manifesta-se na raridade da colaboração intergeracional para criação de negócios, na agressividade entre tribos políticas, no difícil diálogo sobre como nos devemos organizar no combate ao centralismo e na gestão do território. Construímos ilusões disfarçadas de ambições quando, por preguiça ou inconsciência, descuramos o detalhe das nossas grandes estratégias.
Afirmar como verdade absoluta que o único caminho para desenvolver do Norte é a Regionalização, sem que haja uma proposta concreta de limites, competências, fontes de financiamento e modo de funcionamento, é fugir ao problema porque cada um tem o seu modelo preferido. Fosse fácil alcançar um consenso e haveria já, preto no branco, uma proposta com nível adequado de detalhe.
Mas a Regionalização só por si não é a solução; quando muito proporcionará uma optimização dos processos de decisão, acompanhada por uma distribuição mais racional dos recursos nacionais e europeus. É que continua a faltar o essencial: ganhar dimensão, "de baixo para cima", na gestão do território. Os resultados da acção dos autarcas, mesmo quando competente, são limitados por uma estrutura fragmentada disfuncional. Veja-se este exemplo no Porto: freguesia de S. Nicolau - 2.568 eleitores, área de 0,21 km²; freguesia de Paranhos - 42.302 eleitores, área de 6,67 km². O mesmo modelo para realidades de escala tão diferente? Falta fundir, ao menos, autarquias locais sem massa crítica. Se aparecerem “autarquias gay” talvez este tipo de uniões conquiste mais atenção...
Quando vir que a fusão de freguesias e municípios (indispensável com ou sem Regionalização, e mais importante que esta) tem apoio generalizado, acreditarei que a população do Norte talvez possa beneficiar com o estabelecimento de uma Região nascida por crescimento orgânico, referendada concelho a concelho. Quando verificar que se evitam redundâncias no associativismo e lutamos unidos pelas causas que afirmamos comuns, ficarei convencido de que a merecemos.
(publicado no JN de 2009/11/19)
Há no Norte, claramente, um problema interno de comunicação. Manifesta-se na raridade da colaboração intergeracional para criação de negócios, na agressividade entre tribos políticas, no difícil diálogo sobre como nos devemos organizar no combate ao centralismo e na gestão do território. Construímos ilusões disfarçadas de ambições quando, por preguiça ou inconsciência, descuramos o detalhe das nossas grandes estratégias.
Afirmar como verdade absoluta que o único caminho para desenvolver do Norte é a Regionalização, sem que haja uma proposta concreta de limites, competências, fontes de financiamento e modo de funcionamento, é fugir ao problema porque cada um tem o seu modelo preferido. Fosse fácil alcançar um consenso e haveria já, preto no branco, uma proposta com nível adequado de detalhe.
Mas a Regionalização só por si não é a solução; quando muito proporcionará uma optimização dos processos de decisão, acompanhada por uma distribuição mais racional dos recursos nacionais e europeus. É que continua a faltar o essencial: ganhar dimensão, "de baixo para cima", na gestão do território. Os resultados da acção dos autarcas, mesmo quando competente, são limitados por uma estrutura fragmentada disfuncional. Veja-se este exemplo no Porto: freguesia de S. Nicolau - 2.568 eleitores, área de 0,21 km²; freguesia de Paranhos - 42.302 eleitores, área de 6,67 km². O mesmo modelo para realidades de escala tão diferente? Falta fundir, ao menos, autarquias locais sem massa crítica. Se aparecerem “autarquias gay” talvez este tipo de uniões conquiste mais atenção...
Quando vir que a fusão de freguesias e municípios (indispensável com ou sem Regionalização, e mais importante que esta) tem apoio generalizado, acreditarei que a população do Norte talvez possa beneficiar com o estabelecimento de uma Região nascida por crescimento orgânico, referendada concelho a concelho. Quando verificar que se evitam redundâncias no associativismo e lutamos unidos pelas causas que afirmamos comuns, ficarei convencido de que a merecemos.
(publicado no JN de 2009/11/19)
2009/11/06
Coisas Óbvias
Viver em habitação social não pode ser considerado “normal”
- As Assembleias Municipais são mal aproveitadas como espaço de ligação de eleitos a eleitores. As sessões, anunciadas de forma medíocre, decorrem geralmente em locais com reduzida lotação. Por vezes, como acontece no Porto, é obrigatório um aborrecido processo de inscrição prévia. Se lamentamos o desinteresse da população quanto à Política e à gestão do património comum, proporcionemos ao menos condições para que haja transparência no debate e adequada prestação de contas. Hoje em dia é inadmissível a ausência de um arquivo das gravações áudio e vídeo das sessões das Assembleias Municipais nos sítios na Internet de cada concelho. É perfeitamente viável, a custos insignificantes, fazer até a transmissão em directo; nem sequer é inédito em Portugal. A audiência será assim incomparavelmente maior. Desconfio é que alguns não gostarão de ver exposta a forma como exercem o seu cargo.
- Quanto mais analiso o problema de bairros como o do Aleixo e converso com as pessoas directamente envolvidas, mais me convenço de que o problema principal não é a droga nem a pobreza: é a dependência do Estado! Quem se viciou (o termo é mesmo este) nos apoios públicos raramente percebe que entrou numa espiral de degradação pessoal e social. Viver em habitação social (subsidiada, portanto) não pode ser considerado “normal”, mas somente uma situação transitória para ultrapassar dificuldades financeiras pontuais de cidadãos activos, ou uma solução de recurso para quem, tendo idade avançada ou alguma incapacidade grave, não encontra outra alternativa. “Habitação social” não implica segregar pessoas em bairros específicos. Em vez disso, pode a autarquia arrendar ela própria habitações no mercado aberto, que depois subarrendaria por valores subsidiados a quem não consiga dispensar a ajuda. É mais rápido do que construir, muito mais flexível, ocupam-se fogos agora devolutos no centro das cidades.
Estas não são ideias novas, evidentemente. Presumo que sejam óbvias e quiçá consensuais. Por que não são aplicadas?
(publicado no JN de 2009/11/05)
- As Assembleias Municipais são mal aproveitadas como espaço de ligação de eleitos a eleitores. As sessões, anunciadas de forma medíocre, decorrem geralmente em locais com reduzida lotação. Por vezes, como acontece no Porto, é obrigatório um aborrecido processo de inscrição prévia. Se lamentamos o desinteresse da população quanto à Política e à gestão do património comum, proporcionemos ao menos condições para que haja transparência no debate e adequada prestação de contas. Hoje em dia é inadmissível a ausência de um arquivo das gravações áudio e vídeo das sessões das Assembleias Municipais nos sítios na Internet de cada concelho. É perfeitamente viável, a custos insignificantes, fazer até a transmissão em directo; nem sequer é inédito em Portugal. A audiência será assim incomparavelmente maior. Desconfio é que alguns não gostarão de ver exposta a forma como exercem o seu cargo.
- Quanto mais analiso o problema de bairros como o do Aleixo e converso com as pessoas directamente envolvidas, mais me convenço de que o problema principal não é a droga nem a pobreza: é a dependência do Estado! Quem se viciou (o termo é mesmo este) nos apoios públicos raramente percebe que entrou numa espiral de degradação pessoal e social. Viver em habitação social (subsidiada, portanto) não pode ser considerado “normal”, mas somente uma situação transitória para ultrapassar dificuldades financeiras pontuais de cidadãos activos, ou uma solução de recurso para quem, tendo idade avançada ou alguma incapacidade grave, não encontra outra alternativa. “Habitação social” não implica segregar pessoas em bairros específicos. Em vez disso, pode a autarquia arrendar ela própria habitações no mercado aberto, que depois subarrendaria por valores subsidiados a quem não consiga dispensar a ajuda. É mais rápido do que construir, muito mais flexível, ocupam-se fogos agora devolutos no centro das cidades.
Estas não são ideias novas, evidentemente. Presumo que sejam óbvias e quiçá consensuais. Por que não são aplicadas?
(publicado no JN de 2009/11/05)
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